Para cada ação temos uma reação. Entramos na era da cultura do cancelamento, bem que poderia ser na ‘era de aquário’, onde o homem se transforma através do ser. Afinal, são com os erros que evoluímos para nos tornarmos seres humanos melhores, mas na internet essa filosofia não tem vez, por trás de cada arroba, existe um juiz pronto para apontar o dedo e dar a sentença – a rede se transformou em um verdadeiro tribunal, e o pior, não existem inocentes, todos são culpados. O celular até então para obter informação acabou gerando munição para pessoas que agora possuem uma arma na mão. A situação não é das melhores.
“O conceito da ‘cultura do cancelamento’ é algo bem contemporâneo e que teve os seus primeiros registros em meados de 2019. Trata-se de um conceito que ainda é uma tendência na era digital e surfa numa onda composta de análise de comportamentos, discursos e posicionamentos de pessoas que, nem sempre carregam consigo um posicionamento como a maioria das pessoas e essa ação é exposta publicamente, gerando uma visibilidade negativa ao sujeito e, consequentemente efeitos colaterais a sua reputação”, explica o historiador Cássio Luige.
VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA – HUMILHAÇÃO E OFENSAS SOBREPÕEM CARINHO E EMPATIA
O impacto na saúde mental de uma pessoa após o cancelamento pode gerar sérios problemas. “O cancelamento gera frustração, espanto e incompreensão. Tudo isso abala a confiança da própria pessoa, e a sua estima também. A cultura do cancelamento já existia anteriormente em grupos sociais. Mas, o fator virtual parece ter ganhado mais peso. Por conta da exposição na mídia que a pessoa irá sentir, provocando uma ansiedade. Vale lembrar que psicologicamente a cultura do cancelamento é “outra forma de bullying”, sendo tanto psiquiatricamente, como psicologicamente assim percebidas”, ressalta o psicólogo Alexandre Bez.
A cultura do cancelamento não é algo atual, existem personagens históricos que foram literalmente cancelados e minados da história. Há quem diga que Jesus Cristo foi um dos primeiros a ser cancelado pelo público, mas será que foi mesmo? “Por se tratar de um conceito contemporâneo, utilizá-lo para retratar personagens históricos de séculos passados seria um discurso totalmente anacrônico, mas se aplicarmos este conceito na história e figura de Jesus Cristo, por exemplo, não daria muito certo, pois haja vista, a pessoa de Jesus possuía seguidores desde a sua vida pública quando pregava para multidões e que esta porção de seguidores se expandiu pelo planeta ao decorrer dos séculos. Inclusive, muitas foram as pessoas consideradas mártires que morreram por causa de Jesus. Até nos dias atuais muitos cristãos do Oriente Médio são perseguidos e mortos por acreditarem e seguirem o Cristo. Desta forma, podemos compreender que ele não é um personagem cancelado, pois historicamente Jesus Cristo acabou dando origem ao Cristianismo como religião oficial do Império Romano”, explica Luige.
“Um personagem interessante que realmente foi cancelado da história e que ninguém escuta falar é o navegador português Diogo Cão. Ele chegou a uma região ao Sul da África e não conseguiu cruzar o continente, pois estava em busca do caminho para as Índias. Então, Diogo Cão foi para uma região ao Sul da África, voltou para Portugal e falou que tinha chegado ao fim do mundo. Ele chegou e divulgou que a África tinha um limite que era impossível contornar o referido continente para se chegar às Índias. Certo período, em anos posteriores, o Bartolomeu Dias conseguiu ultrapassar a viagem do Diogo Cão, passando por uma costa muito perigosa chamada Costa dos Esqueletos, bem ao Sul da Angola e aí ele consegue atravessar o Cabo das Tormentas, navega em direção ao Norte, comprovando que era possível chegar às Índias, sim. Então, por causa dessa mentira do Diogo Cão, ele acaba ficando completamente esquecido da história. Outras pessoas que foram canceladas e esquecidas são os líderes da Conjuração Baiana, ou seja, Luiz Gonzaga, Lucas Dantas, Manoel Faustino e João de Deus. Esses quatro quase não são lembrados e poderiam ter sido transformados em heróis nacionais assim como Tiradentes foi, por exemplo. Tendo em vista que esses quatro homens eram mulatos e tinham apostas radicais ligadas às camadas populares, eles então não foram reconhecidos pela República, que foi proclamada no Brasil, tendo um perfil completamente elitizado e liderado por brancos”, finaliza o historiador.
OPINIÃO – A ERA DOS INFLUENCIADORES QUE NÃO INFLUENCIAM EM NADA
Retornando ao cancelamento atual – a primeira questão para refletir é que o cancelamento de qualquer natureza já coloca as pessoas em situações de vulnerabilidade. Pessoas já fragilizadas emocionalmente tendem a sofrer bastante com todas as críticas. Quanto mais emocional for, maior a probabilidade de sofrer com toda a retaliação. Lidar com essas situações não é fácil para ninguém, mas para os mais frágeis esses conflitos podem acabar minando sua capacidade de entender as questões do outro pensar coletivamente.
“A cultura do cancelamento, por ser uma forma de bullying, ela provoca feridas, independentemente em estar certo ou errado. Essa cultura de cancelar outras pessoas ignora princípios básicos existenciais, como por exemplo, o respeito e o direito de defesa (não estamos aqui falando de direito penal) – em casos de pessoas portadoras de algum transtorno depressivo, que tenha tendências suicidas, a cultura do cancelamento poderia desenvolver algo mais sério. É necessário compreender os motivos que a levaram a ser ‘cancelada’. Foi algum equívoco de quem a cancelou ou de fato houve algum erro nas atitudes da pessoa que motivaram o seu cancelamento? Sem dúvida alguma em ambos os casos se recomenda a terapia como uma forma de apoio e fortalecimento para a pessoa ‘cancelada’ por conta de toda a pressão psicológica por trás do ato de cancelamento”, alerta Bez.
