Caro leitor: conheça o Cemitério dos Livros Esquecidos, onde suspense, sofrimento, morte e redenção se encontram e se perdem em meio a labirínticas prateleiras empoeiradas. Esse cenário apaixonante faz parte de quatro romances do escritor espanhol Carlos Ruiz Zafón: “A sombra do vento”, “O jogo do anjo”, “O prisioneiro do céu” e “O labirinto dos espíritos”. A Espanha de Miguel de Cervantes já se rendeu ao estilo Zafón e o mundo passa a reverenciá-lo a cada dia: o escritor, que também trabalha como roteirista em Hollywood, é um alento para os apaixonados por imaginação.
Lançados entre 2001 e 2017, a série apresenta ao público um cemitério de livros em que os poucos privilegiados com acesso ao enigmático local escolhem uma obra para chamar de sua. Mas essa escolha vai bem além das estantes centenárias: ela delineia destinos.
São quarenta anos de histórias de mistério e descobertas que se passam, sobretudo, na Barcelona franquista (regime fascista que governou o país entre 1939 e 1976). A cidade catalã é a verdadeira protagonista de todos os livros. Eternizada por Gaudí, a Barcelona de “A Sombra do Vento” é enigmática. A de “O Jogo do Anjo” é escura. A de “O prisioneiro do Céu” é suja, podre, corrupta. A de “O Labirinto dos Espíritos” é reveladora.
Narrativa
“A sombra do vento” (2001) mostra a luta do jovem Daniel Sempere, 11 anos, para descobrir o paradeiro do misterioso romancista Julián Carax. O trecho a seguir ilustra o fascínio do jovem pelo livro que escolheu no Cemitério dos Livros Esquecidos: “O sonho e a fadiga queriam me derrubar, mas eu resistia a entregar-me. Não queria perder o encantamento da história nem dizer ainda adeus aos seus personagens”.
Daniel sabe que o livro é maldito: afinal, alguém em Barcelona dedica sua vida a encontrar obras de Carax para queimá-las. As trajetórias de leitor e autor teimam em se cruzar na narrativa: as experiências amorosas, os amigos, as decepções. Daniel e Julián, por vezes, tornam-se um. Personagens como Clara, o primeiro amor de Daniel, Beatriz, o amor da vida toda, e o temido e implacável inspetor Fumero completam a lista de personagens fundamentais para o entendimento da trama.
Em “O prisioneiro do céu” (2012), terceiro livro da série, Daniel já está casado e trabalhando na livraria da família, a decadente Sempere e Filhos. Ele assume no enredo o papel de ouvinte e confidente de Fermín Romero de Torres, que, já no primeiro livro, mostra-se o personagem mais carismático da saga. “O prisioneiro do céu” narra a busca da identidade de Fermín às vésperas de seu casamento. Opositor do regime franquista, Fermín revive seu passado ao lado de Daniel, destrinchando os tempos em que esteve na prisão de Montjuïc e conheceu o escritor David Martín, o prisioneiro que dá nome à trama.
Inferior ao primeiro livro em termos de suspense, “O prisioneiro do céu” prima pelos laços de amizade entre Fermín e Daniel, duas vidas erigidas sobre a dor. Os capítulos em que Fermín narra os acontecimentos da prisão de Montjuïc constituem uma aula de literatura, sem falar na bela homenagem à aventura de “O Conde de Monte Cristo”, de Alexandre Dumas, e seu emblemático personagem Edmond Dantès.
O livro também apresenta tipos odiosos, como o diretor da prisão Mauricio Valls, e amáveis, como a sedutora Rociíto, que, juntamente com Fermín, proporciona momentos de rara beleza e docilidade: “A orquestra tinha parado de tocar e a pista se abriu para receber Rociíto. Fermín pegou-a pela mão. Os lustres do La Paloma se apagaram lentamente e, no meio das sombras, emergiu o jato de um refletor desenhando um círculo de luz vaporosa aos pés do casal. Todos se afastaram e lentamente a orquestra atracou o compasso do mais triste boleto que alguém já compôs. Olhando-se nos olhos, distantes do mundo, os amantes daquela Barcelona que não voltaria nunca mais dançaram juntinhos pela última vez. Quando a música acabou, Fermín beijou Rociíto nos lábios e ela, banhada em lágrimas, acariciou seu rosto e caminhou devagar para a saída, sem dizer adeus”.
Protagonista de “O jogo do Anjo”, o escritor David Martín é quem divide confidências com Fermín na prisão, contando sobre sua intrigante amizade com Isabella, mãe de Daniel, e a paixão proibida por Cristina, que é casada com seu melhor amigo.
Essas duas personagens femininas são fundamentais em “O jogo do anjo”, em que Martín é um escritor renegado que recebe o convite do estranho editor Corelli para escrever um livro religioso. Conforme escreve, sua vida passa a ser circundada por mistérios. Ficção e realidade começam a se misturar de forma perigosa nessa história com ares de Fausto (o clássico do escritor alemão Goethe em que o médico protagonista faz um pacto com, bem, você sabe quem!).
Nenhum dos livros do Cemitério dos Livros Esquecidos chega a ser um romance experimental, mas a estética narrativa de Zafón difere, e muito, dos outros autores best-sellers do mercado editorial. “A sombra do vento”, “O jogo do anjo”, “O prisioneiro do céu” e “O labirinto dos espíritos” são histórias de livros, autores e leitores, e da inevitável mistura entre realidade e sonho.
Apesar de o autor sentenciar que não é necessário ler os livros em ordem, indica-se começar por “A sombra do vento”, em que os personagens e suas aventuras estão destrinchados de forma mais fluida. A complexidade da frase a seguir, por exemplo, só pode ser apreendida na leitura sequencial dos livros: “E, se algum dia, ajoelhado diante de seu túmulo, sentir que o fogo da raiva está tentando se apoderar de você, lembre-se de que na minha história, como na sua, há um anjo que conhece todas as respostas”. Esse trecho da carta de David Martín a Daniel Sempere, aliás, é o gancho para o livro final, “O Labirinto dos Espíritos”, o mais emotivo e policial da saga.
A tetralogia de Zafón é uma grande biografia da Barcelona que sangra durante e após a Guerra Civil e chora com os dissabores de Daniel Sempere, Isabella, David Martín e Fermín Romero de Torres. Eles, ao contrário dos Livros do Cemitério, jamais serão esquecidos.