Por Gabriel Messias
Imagine. É uma noite quente de sábado de carnaval em Salvador. Milhares de pessoas aguardam a saída do bloco Ilê Aiyê na frente do terreiro Ilê Axé Jitolu. Banho de pipoca, pomba branca e o carnaval começa carregado de axé. Os músicos se posicionam. Primeiro os instrumentos de fundo, os maiores e mais pesados, compostos por dois surdos que, segundo mestre Kehindê Boa Morte, podem ser denominados: “Fundo um e fundo dois”.
“ADINKRA, MEU PAI” FALA DAS TRADIÇÕES AFRICANAS, DE MAGIA E DO AMOR POR UM ENTE QUERIDO
Eles oferecem a pulsação, a essência do grupo, funcionam como as batidas do coração. Em seguida vem a “dobra de uma”, que marca o contratempo dos fundos. Depois o “Martelo”, que fortalece os graves. São instrumentos que fazem o peito vibrar e que dão base para os mais agudos poderem inovar a levada.
Esse tipo de música, assim como toda a música negra desenvolvida na diáspora, só acontece no coletivo e não faz muito sentido no individual. Sabe-se que o pensamento eurocêntrico tentou branquear essas músicas; engarrafando-as em individualismo, concorrência e mais valia. O cantor virou um deus e os instrumentos de fundo são a “cozinha”. Mas não desista da leitura se você veio até aqui para ler sobre literatura negra brasileira, pois é ela mesma o foco aqui.
O LUTO NA LUTA – O ALVO PRINCIPAL TEM COR, GÊNERO E ETNIA
Assim como a banda de bloco afro só existe no coletivo, a literatura negra brasileira também se fundamenta nessa cultura. Os surdos de marcação são os escritores primeiros, os mais velhos. Aqueles que assentam a negritude brasileira há anos e que abrem caminhos para os instrumentos da linha de frente. Tal qual Sankofa, esses instrumentos da linha de frente só conseguem inovar e criar outros caminhos para sua identidade se carregarem no peito a marcação grave dos que vieram primeiro. Por isso é possível arriscar que é na antologia que a literatura negra compõe seu bloco afro. Antologias aonde os que vieram antes abrem caminhos para os mais agudos da linha de frente, e que com eles criam o novo.
Existem muitas pessoas pretas escrevendo no Brasil hoje. Existem muitas editoras geridas por pessoas pretas (também na lógica dos blocos afros, com a benção de editoras mais experientes). Certamente é possível, como já existe, uma livraria inteira apenas com esse conteúdo. No entanto, dificilmente o leitor da literatura branca encontrará esse material nas “grandes livrarias”. Talvez encontre nomes de surdos de marcação importantíssimos como Conceição Evaristo, Carolina Maria de Jesus, Solano Trindade, entre outros. Mas um surdo sozinho não faz carnaval. E essas mestras e mestres sabiam e sabem disso.
TERCEIRO SINAL: A CENA É PRETA
O mercado editorial branco ainda quer a literatura burguesa, onde todo mundo ouve um. Enquanto na literatura negra todo mundo se escuta e cria um mundo negro, vasto e rico. Enquanto o mercado editorial branco transforma nomes de pessoas em marca, a literatura negra faz da antologia uma celebração do povo. Nas palavras de Cristiane Sobral: “nossa literatura é chegança”. Chegança como o bloco afro que vem primeiro no peito, para depois se revelar aos olhos, virando as esquinas da avenida. A literatura negra acontece junto, no espaço público e em mutirão.
Foi assim com a Quilombhoje e a Editora Aldeia de Palavras, de Cristiane Sobral, que lançará esse ano a antologia “Pretos em Contos – Volume 2” em parceria com outro surdo de primeira, potente como ela, o escritor Plínio Camillo. Eles serão base para os repiques, caixas e timbal de escritoras e escritores ainda pouco conhecidos. Mas, como diria o poeta: “quem faz o carnaval é o folião”. Por isso, mais urgente agora é o papel da leitora e do leitor, ousados e curiosos, que vão buscar nesses quilombos literários um refúgio e um mapa que os decifrem e que decifre também o país. Faça você parte disso, siga com a literatura negra brasileira pela Estrada da Liberdade, pois nessa levada não haverá quarta-feira.
Participam: Cristiane Sobral, Débora M. Andrade, Denise Nascimento, Diogo Nogue, Gabriel Messias, Ifè Rosa Oadq, Ivan Reis, Kátia Moraes, Luana Levy, Maza Dia Mpungo, Negro Du, Plínio Camillo, Shirley Maia, Suedi Fernandes, Thiago Pedroso e Vinicius Henrique.