Algo me incomoda faz um tempo e precisava colocar para fora em forma de palavras. Já ouviu aquela frase “antes de limpar a casa do vizinho, limpe a sua?” Pois é, acho que durante muito tempo estamos varrendo sujeiras para debaixo do tapete, olhando e reclamando sobre a sujeira na casa do vizinho.
O vizinho, no exemplo, são os heterossexuais. Vivemos tão em função de fazer com que eles despertem / enxerguem /acordem para a vida sobre o respeito às diferentes sexualidades, sobre respeitar o indivíduo como um todo, sobre termos os mesmos direitos – já que os deveres nós temos, enquanto seres humanos, que na grande maioria das vezes esquecemos de olhar para dentro da nossa sopa de letrinhas. E se você pegar com a colher apenas uma letra, no caso a G, podemos conversar sobre coisas importantes e necessárias para nossa evolução.
Sim, refletiremos sobre sexo, mais precisamente a relação que o mundo tem com os passivos. Sendo um passivo, tenho muita coisa para contar sobre o assunto, mas para começar essa conversa, quero deixar aqui um pequeno texto, muito enriquecedor e claro, de uma filósofa americana chamada Marilyn Frye, que publicou em 1983 seu livro “Políticas da Realidade: Ensaios sobre Teoria Feminista”.
Mas agora você deve me perguntar: mas o que isso tem a ver com o assunto? Vamos ler a citação, onde ela diz que a cultura heterossexual masculina é homoafetiva:
“Dizer que um homem é heterossexual implica somente que ele mantém relações sexuais exclusivamente com o sexo oposto, ou seja, mulheres. Tudo ou quase tudo que é próprio do amor, a maioria dos homens héteros reservam exclusivamente para outros homens. As pessoas que eles admiram; respeitam; adoram e veneram; honram; quem eles imitam; idolatram e com quem criam vínculos mais profundos; a quem estão dispostos a ensinar e com quem estão dispostos a aprender; aqueles cujo respeito, admiração, reconhecimento, honra, reverência e amor eles desejam; estes são, em sua maioria esmagadora, outros homens. Em suas relações com mulheres o que é visto como respeito é gentileza, generosidade ou paternalismo; o que é visto como honra é a colocação da mulher em uma redoma. Das mulheres eles querem devoção, servitude e sexo. A cultura heterossexual masculina é homoafetiva, ela cultiva o amor pelos homens”.
Quando eu li essa parte eu confesso que uma luz se acendeu em minha mente, e não pude deixar de fazer uma transposição / analogia ao que nós, os passivos, vivemos.
Comecemos nossa reflexão lembrando que todos nós, independentemente do sexo e sexualidade, somos crias do machismo. Ensinados em educação, cultura e ótica do macho. De suas vantagens, privilégios e poder. Isso, em nenhum momento, como eu disse, eximiu os homossexuais masculinos (letra G da sigla) de serem ensinados sob esta ótica.
O corpo, a diminuição, a vergonha
E assim, esse mesmo conceito dito pela Fryer, para mim, pode ser utilizado em como, na maioria das vezes, os ativos olham para os passivos, e as consequências disso. É ver o passivo como mulher, e em consequência, utilizar dos ensinamentos machistas no dia a dia.
Antes de prosseguir, devo deixar claro, toda vez, que a luta de todo ser humano deve ser pelos direitos e deveres iguais para todos. Não existe ‘mas eu acho’ aqui. Todo ser humano tem o direito a percorrer os caminhos que escolheu para ser pleno. Tem o direito de exercer a sua orientação afetiva, e direito de ser tratado em forma igualitária no trabalho, na sociedade, na religião, na cultura, no esporte e por aí vai.
Seguindo o raciocínio, tudo o que é feminino vale menos, portanto, não está no mesmo patamar que o masculino. Assim aqueles que se identificam como passivos, passam, por osmose, a receber o valor do feminino. Já que, no verbo rasgado, eles ‘gostam de dar’, ‘fazer o papel da mulher’ numa relação homoafetiva.
E aí precisamos urgentemente começar nossa desconstrução dessa visão tóxica. A de que papéis exercidos na cama por quem quer que seja definem o valor dessa pessoa na sociedade. Tanto em homens quanto em mulheres.
Quantas vezes você, LGBTQIA+ não ouviu em rodas de amigos, ou, pior ainda, não falou, frases como “Ah sua passiva”, “Olha lá aquela passivona!”, “Ih tá parecendo aquelas passivas gulosas”, “Para de agir como uma passiva”, entre tantas outras.
Percebe que o denominador comum de todas elas é usar o fato da pessoa ser passivo sexualmente para diminuí-lo, em valor e respeito. Como se o ato de ser penetrado fosse também um ato de pegar seus privilégios de macho e jogá-los no lixo, ser um traidor.
Toda vez que brincadeiras como essas são utilizadas, reforçamos o resquício do macho na nossa vida.
E isso implica na vergonha que muitos passivos têm de se assumirem passivos (Sim, isso existe e muito). Quantos se apresentam como versáteis, ao vivo ou em aplicativos de relacionamentos, com medo de serem estereotipados como menores e excluídos, por ‘gostarem de dar’… quantos!
Quantos passam a se verem com vergonha por serem quem são e começam a sofrerem internamente. A criarem fobias e medos. A, muitas vezes, tentarem ser ativos para não se sentirem diminuídos. São tantos os relatos que ouvi e ouço – e imagino que se você é integrado na sua comunidade deve ouvir também – que muitas vezes nem sequer pensamos nas consequências desses atos na mente de um ser humano.
Quem também nunca ouviu um, “Ai ele disse que era versátil e quando cheguei lá já foi virando a bunda pra mim, uma DECEPÇÃO!”, “Você acredita que eu achei que ele ia me comer e eu TIVE que comer ele? Já estava lá né!”. Podia ficar um dia inteiro citando frases assim.
Passivos do mundo é preciso parar de sentir vergonha de ser quem você é.
Não curto afeminado.
Entramos agora numa outra questão que, em grande parte, está associada aos passivos: terem comportamentos, trejeitos, ou alguma coisa que lembre o feminino.
Somos bombardeados todos os dias com frases do tipo “não curto afeminados”, “quero homem com jeito de homem”, “discreto”, “apenas questão de gosto”.
Vou contar um acontecido com um amigo meu. Ele é ativo e estava namorando um cara passivo há 2 anos. Apaixonado, cheio de planos, o cara era o amor da vida dele. Um dia, chegando do trabalho, ele encontrou o cara saindo do banho e com a perna na cama, passando hidratante no corpo.
Ele associou aquela imagem ao comercial da Xuxa passando Monange (ou seja, um comportamento feminino), e o tesão dele parou de existir com o cara. Eles terminaram no dia seguinte. Eles terminaram por uma passada de hidratante na perna!! Vocês têm noção disso?
Essa é apenas uma das histórias que eu ouço. Agora sobre o gosto, é preciso se perguntar o quanto disso é gosto, o quanto disso é ensinamento, o quanto disso é amor ao masculino e não ao ser humano (olha a Fryer ai de novo!).
E as respostas estarão na terapia de cada um. Nas desconstruções e no conhecimento de si mesmo.
Outro caso que podemos citar aqui e que reflete bem como nossa comunidade age perante o afeminado, foi o famoso caso do alemão masculino que publicou fotos com o namorado asiático afeminado, e a revolta causada nas pessoas ao acharem um absurdo um homem ‘bonito e másculo’ daquele estar com um gay ‘feio e feminino’ daqueles.
Nossos valores param na pele, na imagem. No corpo. Um músculo vale mais que um caráter. Um comportamento masculino vale mais do que um sentimento verdadeiro, uma voz e barba valem mais do que uma pessoa que não foge na primeira briga, não corre no primeiro defeito.
E há outro paradigma aqui: o de achar que todo afeminado também é passivo. Que ledo engano! Conheço tantos afeminados que são 100% ativos, de não deixarem nem colocar a mão em suas bundas. Provando mais uma vez o quanto a sexualidade é complexa demais para ser definida em preto e branco 8 ou 80. Afinal, não somos arco-íris? Vivemos sem lembrar o básico, somos diversos demais, complexos demais, interessantes demais.
E olha que estou falando de comportamentos afeminados, nem entrei ainda nas questões de ser uma dragqueen.
É mais seguro ter uma imagem masculina do seu lado. Se você for pensar bem, nesse país, faz sentido até.
Volto a dizer que existem todos os tipos de gostos e temos que respeitá-los. Mas para você dizer qual o seu, você precisa se conhecer. E não reproduzir um ensinamento sem ao menos questioná-lo. E acho que isso deve ser feito com tudo na vida.
Às vezes o amor de nossas vidas está do nosso lado, mas deixamos a oportunidade passar por um comportamento, uma sobrancelha feita, uma voz mais fina. Uma roupa mais chamativa. Deixamos o diferente nos impedir de viver experiências transformadoras. Deixamos o preconceito, muitas vezes, ser a guia de nossas relações em vários níveis.
Por fim, passivos do mundo, uni-vos em certeza de que você nunca foi nem será menor por gostar de ser penetrado. E que o seu todo complexo vale muito a pena, em todos os sentidos. Nunca duvide disso!