Um texto para se despedir de abril, mês da dança. Um texto pra se despir do que somos, matéria orgânica.
Sobre dançar, experiência corpada do agora. E sobre as memórias que nos constituem, partículas ancestrais que alimentam nosso mover.
Um texto para mulheres que dançam suas próprias vidas. E as vidas, das vidas, das vidas. Somos muitas. Vivemos um distanciamento, mas dançamos experiências em comum.
MOVER-SE PARA CUIDAR DE SI: A DANÇA ANCESTRAL COMO CAMINHO DE CURA
Nosso corpo-mulher desenha traços de resistência no espaço. O corpo que dança move estruturas, movimentamos mundos quando dançamos nossa existência.
Quais são os moveres possíveis do agora?
Nesse momento, os movimentos parecem estagnados. Está difícil dançar. Os micro movimentos do corpo mudam de proporção, sentir-se dançando a própria rotina, fechar a retina e abrir outras formas de percorrer caminhos dentro de si. O movimento do corpo como possibilidade de iniciar uma coreografia cotidiana. Dançar as pistas que a vida nos dá pra se manter caminhando, andar as andanças.
A distância confunde a dimensão das coisas. A ausência de um outro corpo, a saudade de dançar junto, de dançar ocupando os vãos de outros corpos criando labirintos de outras presenças, me causa nuances de sentimentos, oscilações de humor e lacunas de emoções abafadas. Danço melhor com outra pessoa se encontro minha própria dança.
Esses espaços abrem outras camadas, que a gente, acostumada em produzir, entregar, roteirizar, acha que nem é dança. Que a gente, acostumada em se diminuir pra caber na sociedade, à mercê do certo e do errado, acha que não é dança. A gente se acha torta. Comparada a quê? Fora. A mais ou a menos. O convite desse texto é para uma dança autoral, para que nossos ossos permaneçam firmes e suportem o baque. Para articularmos as dobras nos flexibilizando ao balanço da instabilidade, para expandir mais as costelas na inspiração e fortalecermos nossos músculos pra levantar das quedas. Com um genocida não se brinca, em um país esquecido, de dez um não come, o corpo deprime. O mover do sorrir tem vetores de força contra a gravidade, precisa resistir na intenção de não se perder do que é afeto, família, alimento e ar. Respirar é o mover mais sagrado do agora.
Dançar à chuva e com ela, dançar ao mar e com ele, os trovões, o luto, a faxina, o banho. Experiencie o que você faz, inclusive o que dói, porque dói em muitas. Dancemos para deixar ir. Fechar e abrir é movimento constante, a natureza do que somos: os ciclos, as estações, a morte-vida-morte. Que esse movimento de desapego do outono seja reconhecido e vivenciado por nós. E que o mover das árvores seja evidenciado como espetáculo sobrevivente. Não ignore o que você vê. O corpo dança por viver.
Dançar o que tensiona.
Dançar a imobilidade.
Dançar o que é memória.
Dançar o que é espera.
Os silêncios e as pausas. Pausa também é dança, silêncio às vezes é grito, nem tudo passa pela voz. A foto captura o corpo, as palavras tentam capturar sentimentos e talvez ideias, o que não é palavra pode ser dança.
Os nomes escritos na tela plana, rosto-nome, nome e câmera fechada, nome-palavra e palavras ditas. O que diz a imagem na pele dobrando entre as sobrancelhas numa expressão feita despercebida? Chegou lá, do outro lado da tela, “o que foi Drica?”. Sem saber palavrear o que pensei por trás da tela, disse que não entendi. Somos 3D vivendo agora muitas experiências 2D. Saudades das curvas das pessoas, do vento que um corpo causa quando passa perto do outro. O corpo absorve tudo de um espaço, não dá pra dizer a si mesma: “não veja ou perceba aquele quadro na parede”, já foi, viu! Virou corpo-memória-experiência. Nosso corpo experiencia nossa casa, para além do toque, pela presença. A dança cotidiana, a rotina nos coreografa, repete o que te chega, mas não sem sentir o que faz.
“A maior alegria é se perder de nós mesmos por um instante, o si mesmo é infalável, é só seu, e é infalável, pra falar o seu si mesmo, você precisa inventar uma palavra, porque é só seu e é incomunicável. A dança afasta a prisão do eu e abre o si mesmo, que é a experiência real de si”, diz Viviane Mosé no Café Filosófico com a bailarina Dani Lima sobre corpo e dança. O corpo passou a ser uma vergonha, esconder o que não é aceito, tampar olheiras, disfarçar dobras e rugas. O espelho é 2D, o que o outro vê de mim é uma experiência única no espaço em que existo e me movo. O mover é mais do que visível, existem movimentos imperceptíveis a olho nu, a nudez diz sobre pudor, mas também sobre a liberdade de um corpo resistente. Dançar é resistir a uma política de corpos em série, expor opiniões e desenhar ideias e ideais de tempo, contemplar sua própria existência no momento presente.
Contemplar-se!
“A tortura física que a gente passa pra ter um corpo magro e sem celulite não é valorização do corpo, valorizar o corpo é valorizar não um suporte de exercício de poder social, mas valorizar o corpo é valorizar a porção da vida que eu trago em mim”, continua Viviane.
PEITO É CORPO: A HIPOCRISIA DAS TARJAS
Dudude, uma mulher dançante, coreógrafa, diretora e professora, diz em suas aulas de improvisação: “a sua idade de vida é a quantidade de tempo de sua experiência neste planeta. O treinar está sempre associado ao viver, todos nós temos um mistério, essa coisa que não dá pra falar o nome porque ela é desnomeada de si”. E continua dizendo sobre a dança da vida, “faça seu traçado sempre na fresta, sempre escorrendo pra que você consiga nutrir e não perder sua pungência da vida, sua curiosidade, sua fome de fazer”.
Mover o corpo sem medo do ridículo pode trazer a deusa do sol para fora da caverna. Na mitologia japonesa durante muito tempo os deuses e as deusas tentaram tirar Amaterazu da caverna e não conseguiram. Uzume, sem duvidar de si, levantou seu quimono e dançou com seu peito, vulva e inteireza, fazendo todos rirem e debocharem dela, mas não parou de dançar até que a deusa do sol, de rosto radiante saiu da caverna para ver o que acontecia, trazendo luz e calor. “O segredo está no sol dentro dos olhos no espelho”. (Amy Sophia Marashinsky)
Convide-se para dançar, conduza e se deixe ser conduzida por si mesma, não duvide da capacidade do corpo em se mover, pode ser uma dança escondida ou revelada, deixe-se ser conduzida pelo inesperado da vida.