O Brasil é um estado laico, pelo menos é o que diz na Constituição, onde, todas as religiões podem ser praticadas no país, mas a realidade é outra. O crime de intolerância religiosa cresce de forma assustadora no mundo e em território nacional. Segundo pesquisa realizada pelo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, em 2019, houve um aumento de 56% de denúncias de intolerância religiosa, ou seja, pessoas são mortas, agredidas fisicamente e verbalmente, pelo simples fato de seguirem sua fé e religiosidade. As maiores vítimas são das religiões com matrizes africanas, seguida do espiritismo, islamismo, católica, evangélica, budista e protestante.
Vale ressaltar que os cristãos foram perseguidos e mortos, no inicio da era cristã – Já a igreja católica teve um papel cruel na Idade Média, onde condenava e matava os “hereges” (praticantes de outras doutrinas). Os judeus são caçados desde a época do Império Romano, resultando na dispersão do povo, e essa perseguição percorreu por décadas até a chegada do Terceiro Reich, na Alemanha nazista, responsável pelo extermínio de milhões de judeus. O islamismo sofre bastante preconceito, pois tem sua imagem ligada ao terrorismo, recentemente a estudante de pedagogia e muçulmana, Rita Vieira, enquanto aguardava sua vez de tomar a segunda dose da vacina contra o coronavírus, em Manaus, no Amazonas, escutou da própria enfermeira dizendo que estava com medo de aplicar o imunizante “pois ela poderia explodir o local”.
Essas ações criminosas são corriqueiras no país, no último dia 3 de maio, a igreja católica Nossa Senhora dos Remédios, em Osasco, na Grande São Paulo, foi invadida por três pessoas que destruíram sete imagens, incluindo da santa que dá nome ao bairro, a polícia ainda investiga a ação dos criminosos. O Museu de Arte Sacra do Estado de São Paulo se propôs a fazer a restauração das peças que ficarão sob o comando do restaurador João Rossi. “Algumas imagens são das décadas de 1940 e 1950 e o restauro deve demorar no mínimo um ano, em virtude dos danos causados (fraturas e esfacelamento de muitas partes, incluindo cabeça e rosto). Cada imagem será tratada como única, o diagnóstico de cada caso está sendo feito para decidir quais técnicas serão empregadas para garantir bom êxito no restauro de cada uma das obras. A maioria das peças é em gesso, com exceção do Santo Ubaldo, que veio da Itália há 60 anos, toda feita em madeira entalhada”, explica Rossi.
Há 25 anos, o pastor evangélico da Igreja Universal do Reino de Deus, Sérgio von Helder, chutava a imagem de Nossa Senhora Aparecida em rede nacional, um escândalo na época e uma violência para os católicos. O país acordou impactado, no dia da padroeira do Brasil, devido ao ato criminoso do pastor, que teve que fugir para o exterior com sua família, pois estavam recebendo inúmeras ameaças de morte.
“A religião tem uma ligação direta com a arte. Quando destrói um patrimônio religioso está também destruindo a memória e a arte. Respeitar a fé é respeitar a liberdade”, conclui João Rossi.
EDUARDO KOBRA LANÇA GRAFITE “MEMORIAL DA FÉ POR TODAS AS VITIMAS DO COVID-19”
Por se tratar de origem africana, as religiões Umbanda e Candomblé são as que mais recebem ameaças e violência, além do crime de intolerância religiosa, os adeptos sofrem com o racismo. Na intenção de orientar nos casos, foi criado o Instituto de Defesa dos Direitos Humanos das Religiões Afro-Brasileiras (Idafro) – trata-se de uma entidade sem fins lucrativos, constituída por advogados, contabilistas, bombeiros, arquitetos e sociólogos preparados para informar, orientar e assessorar as religiões afro-brasileiras em áreas tais como efetivação e defesa de direitos, acesso à justiça, legalização dos templos, plantão 24 horas em casos de intolerância religiosa, dentre outros serviços.
Ricardo Hida, 45 anos, pai de santo umbandista, professor e apresentador, faz parte da Umbanda há 20 anos, ingressou na religião por conta de estudos na área de antropologia – “hoje sou mestrando em ciência da religião e o assunto fé sempre me despertou interesse enquanto objeto de estudo, desde a faculdade. Visitei um terreiro para um estudo e fiquei interessado na religião que busca valorizar elementos da cultura brasileira e a natureza”, destaca. Hida sofre vários ataques virtuais por conta da sua religião e certa vez foi surpreendido na rua por usar uma camiseta com a escrita “Oxalá”.
“Muita gente ataca as religiões que sequer conhece. Também se trata de um fenômeno que combate a diversidade e que, portanto, entende mal o Deus único, que criou as pessoas, animais e plantas muito diferentes umas das outras. Se a força criadora não gostasse de diversidade, faria tudo igual, em uma só cor. A intolerância religiosa também tende a ser uma fuga da própria responsabilidade. O outro é culpado pelo que acontece com você. Pode ser também uma falta de confiança na própria fé. Quem está bem com a sua, não precisa querer converter outros. Há também, dois aspectos importantes: certas religiões se tornaram empresas e seguem a lógica de mercado: acabar com o que eles julgam “ser concorrente” e no Brasil, especificamente, o ataque às religiões de matriz-africana tem um componente de racismo estrutural. Tudo o que vem do negro foi, por muitos anos, considerado errado, primitivo”, diz.
Ademir Pereira Osorio, conhecido como Ademir ti Osun (Omileji), presidente e sacerdote vitalício da Federação Brasileira de Candomblé e Cultos Afros (Febacan). É freqüentador de religiões de matrizes africanas desde os sete anos de idade, onde saia escondido para participar de sessões nos terreiros de Umbanda da época – em 1992 iniciou-se no culto ao Orixá na nação Ketu. “Para ser bem sincero eu nunca sofri diretamente nenhum ataque ou violência devido a minha religião, já passei por situações agressivas e de ameaças, mas não por causa de minha religião, mas sim por pessoas que muitas das vezes querem usufruir de benefícios próprios usando o nome de nossa religião, e como todo religioso não pode admitir de forma alguma. Nossa religiosidade nada tem a ver com as falhas, defeitos, cobiças e ambições do ser humano e quando alguém tenta misturar as coisas pessoais ou materiais com o meu sagrado eu vou para cima e brigo mesmo. Pode me xingar, me maltratar, me caluniar, não quero nem saber, sou da opinião que cada coisa no seu devido lugar, tudo no seu momento, com certeza tudo tende a dar certo e a vida continuar”, reflete.
A Febacan foi idealizada e fundada há 21 anos por Ademir – é uma entidade nacional associativa, de assistência social, educacional, cultural e religiosa, que busca lutar, orientar e representar os povos e comunidades tradicionais de matriz africana, suas autoridades e lideranças, têm por finalidade apoiar e desenvolver ações para a defesa, elevação e manutenção da qualidade de vida do ser humano e dos templos de Umbanda, Candomblé e da Cultura Afro Brasileira em todas suas extensões através das atividades de educação cultural, social, profissional e religiosa. “A religião com matriz africana é atacada por puro racismo, ignorância e falta de respeito ao outro, pois é inaceitável que nos tempos modernos que vivemos, onde até mesmo uma criança tem acesso à informação, as pessoas ainda continuem perseguindo nossas comunidades tradicionais como se perseguiam os negros escravizados, todos sabemos que a escravidão acabou, então nosso povo deve se unir mais, parar de disputas, de ficar procurando e colocando defeitos nos seus e se juntarem para derrubarmos e acabarmos de vez com este preconceito religioso, ainda enraizado em uma boa parte da população brasileira, acredito que esse já seja o caminho para que nosso povo de matrizes africanas sofram menos perseguição”, pontua.
Priscilla Tavollassi, jornalista e psicanalista integrativa, faz parte da doutrina espírita. Na adolescência freqüentava os centros espíritas devido sua mediunidade – “desde criança eu tinha visões, conversava com espíritos e por isso busquei religiões espíritas que poderiam contribuir para o meu entendimento pessoal, autoconhecimento mesmo”, comenta. “O fato de acreditarmos em espíritos, algo abstrato, intangível sempre é algo de muita crítica. O fato de frequentarmos um centro, de acreditar no passe, de trabalhar a energia, a cromoterapia, a desobsessão etc, tudo isso é questionado por quem é de outra religião porque nunca presenciou, não sabe como funciona. Os filmes espíritas que surgiram na última década juntamente com atores globais que assumiram ser espíritas ajudaram muito na disseminação desse conhecimento, bem como Chico Xavier. Mas, por outro lado, quando líderes espíritas são presos por assédio ou algo assim, da mesma forma que acontece também em outras religiões isso mancha a imagem da doutrina. Mas, precisamos entender que são humanos e que cometem erros e o que importa é a fé e a bondade”, explica.
Tavollassi sofreu muitos ataques de bullying por seguir a doutrina – “No colégio que eu estudava, até por ser católico, sofri bullying de alguns colegas que me chamavam de “ghost”. Me zoavam falando: “e ai, consegue falar com a minha vó?”ou “o que meu tio que morreu está falando?”- e davam risada da minha cara. Mais tarde na faculdade, quando alguns colegas souberam que eu seguia a doutrina espírita, também houve rejeição. E como semelhante atrai semelhante, percebi que a partir de então eu comecei a me aproximar mais de pessoas que tinham os meus valores, pensamentos e também que me respeitavam. Hoje, eu não sou mais questionada em lugar nenhum, ainda que muitas vezes eu tenha que explicar a minha crença, porque me questionam muito por eu acreditar em vidas após a morte”.
Jainda Kelida Marques, 40 anos, conhecida pelo nome religioso por Ifayemisi Olusoji Oyekale, empresária, psicanalista e dirigente espiritual de um templo exclusivo para cultos femininos. Iniciou-se no kardecismo, conheceu a umbanda e kimbanda e iniciou no culto de IFÁ.
“Certo dia estávamos tocando atabaques no templo e nosso espaço ficava em uma sobreloja que em baixo havia uma barbearia, de uma hora para outra, um cliente bateu na porta de forma escandalosa e pediu para parar de tocar, porque ninguém era obrigado a ouvir “aquele barulho” que estávamos tocando para o diabo. Eu já sofri preconceito também em uma rede de TV, onde a apresentadora se negou fazer um merchandising ao meu lado porque eu estava vestida de cigana. Chegou a me oferecer outra roupa para eu entrar no programa, enfim, se eu tiver que entrar, entro como sou”, relembra. “Enquanto as ofensas forem silenciadas, abafadas, oprimidas ou levadas na esportiva, o respeito e a igualdade nunca serão alcançados. A voz é a maior arma no combate aos direitos dos cultos religiosos”, pontua.
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Bruna de Souza Nunes, 27 anos, jornalista e protestante, ingressou na vida religiosa por influência de seu pai evangélico. “Uma vez estava andando na rua com o meu noivo, quando escutei um rapaz dizer: “Crentinhos de merda”. Também sofri intolerância em um trabalho que fiquei pouquíssimos meses. Assim que uma pessoa me perguntou se eu era cristã e eu respondi que sim, ela e outras amigas começaram a generalizar dizendo que os evangélicos eram ladrões e malucos, pois para tudo eles gritavam – sendo que as coisas não funcionam assim, cada igreja tem um estilo diferente”, diz.
“O preconceito que ronda todas as religiões mostra claramente a falta de empatia e, acima de tudo, a falta de querer aprender um conhecimento novo. Não existe essa de religião certa ou errada – desde que não faça mal a ninguém. É muito cansativo ter que ficar ouvindo certos rótulos toda vez que saímos. Estamos em pleno século 21 e as pessoas devem parar de ficar criticando as religiões. É importante conhecê-las antes de vir armado, cheio de palavras que machucam. Além disso, nenhuma pessoa é igual, logo, os pensamentos e atitudes são diferentes. O respeito deve ser levado a sério, principalmente porque estamos falando de fé – que é um dos principais gatilhos de esperança que existem. Já chega de preconceito”, finaliza Bruna.