RENAN QUINALHA: “EM VÁRIOS MOMENTOS DA HISTÓRIA, A POPULAÇÃO LGBTQIA+ FOI O BODE EXPIATÓRIO”

O PESQUISADOR E ATIVISTA ASSINA A CURADORIA DA EXPOSIÇÃO “ORGULHO E RESISTÊNCIAS: LGBT NA DITADURA”
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28.04.2021

Divulgação

Renan Quinalha é professor de Direito da Unifesp, advogado, pesquisador, ativista LGBTQIA+ e dos Direitos Humanos, paulistano da zona leste, cresceu na Vila Matilde onde brincava com seu irmão mais velho pelas ruas do bairro. Frequentador habitual de ambientes culturais, ele diz sentir muita falta dos sambas aos quais costumava comparecer antes da pandemia. Ainda sobre São Paulo ele relembra a potência das festas de rua e da noite LGBT paulistana e também se declara fã de viagens, sendo uma das últimas justamente para a China (já começo a ouvir os gritos de “comunista” ecoando das profundezas da “iliteralidade” brasileira).

Nossa redação veio a conhecer Renan após uma visita à exposição “Orgulho e Resistências: LGBT na Ditadura”, da qual Renan é curador. Dentre livros (o primeiro publicado em 2013 e o segundo a caminho), palestras, podcasts e cursos, ele encontrou tempo para realizar esse trabalho junto ao Memorial da Resistência de São Paulo, prédio que faz parte do complexo da Pinacoteca do Estado na Estação da Luz. Renan não chegou lá por acaso, ele foi assessor jurídico da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo e consultor da Comissão Nacional da Verdade para assuntos de gênero e sexualidade e seu próximo livro, uma versão de leitura mais acessível da sua tese de doutorado, é intitulado “Contra a moral e os bons costumes: a política sexual da ditadura brasileira (1964-1988)” serviu de base para a exposição e será lançado em 2021 pela editora Companhia das Letras

Ter um LGBT como professor na Universidade Federal, lançando livros e ocupando os espaços de debate público é representatividade, parabéns e obrigado Renan. Confira nosso papo e fortaleça seu orgulho lendo sobre a história do movimento LGBT e seu futuro, sobre o seu próximo livro, sobre a exposição e muito mais. 

MOSTRA “ORGULHO E RESISTÊNCIAS: LGBT NA DITADURA” ESTÁ EM CARTAZ NO MEMORIAL DA RESISTÊNCIA, EM SÃO PAULO

Com o afrouxamento das regras da pandemia de Covid-19, o Memorial da Resistência reabre e a nova data de encerramento da exposição é 17 de maio. 

Portal Pepper: Qual foi o gatilho que te fez enveredar pelo caminho acadêmico e trabalhar com esses temas relacionados à comunidade LGBTQIA+?

Renan Quinalha: Eu sempre quis a vida acadêmica, desde que eu entrei na faculdade de Direito da USP, começo dos anos 2000, eu já tinha essa predileção, então eu entrei em grupos de pesquisa e de iniciação cientifica, passei a auxiliar professores em suas monitorias e acho que foi um caminho natural. Assim que terminei a graduação eu quis prestar o mestrado diretamente, eu advogava para pagar as contas, mas segui com o mestrado em paralelo e depois iniciei uma segunda graduação em ciências sociais e em seguida emendei com o doutorado. Até esse momento eu fui conciliando com o trabalho, mas aí eu passei num concurso para ser professor efetivo aqui da Universidade Federal de São Paulo e migrei de vez para a carreira acadêmica. Entre o fim da minha graduação e o início do mestrado eu me assumi gay, nessa época eu já trabalhava com temas relativos aos Direitos Humanos, Violência de Estado e tiveram também as comissões da verdade, então eu decidi, a partir da minha situação pessoal, acrescentar esse recorte LGBT, de diversidade de gênero e de sexualidade ao meu trabalho. 

PP: Você terminou o doutorado em 2017 e o livro será lançado agora em 2021. Fale mais sobre esse projeto. 

RQ:Exatamentchyy”, eu concluí minha tese de doutorado em 2017 pela USP com o tema: “Contra a moral e os bons costumes: A política sexual da ditadura brasileira (1964-1988)”. Esse formato de livro que estou lançando no segundo semestre, contou com uma extensiva pesquisa, tanto em acervos públicos como privados, para que se possa então, compreender como nas décadas da ditadura, 60-70-80, a gente teve aí uma serie de políticas sexuais especificas, ou seja, foi um período de agenciamento do estado, houve uma série de normas, legislações e operações policiais visando perseguir a população LGBT, mas aqui, é importante ressaltar que não era uma perseguição no sentido de exterminar essa população como era no caso dos adversários políticos. Mas sim, buscando dessexualizar os espaços públicos no momento em que essas identidades estavam se firmando dentro das grandes cidades, então, era uma forma de regular a presença desses corpos mantendo-os em locais específicos, como guetos, por exemplo, e, dessa forma, impedi-los de tomar espaços merecidos e de lutar por direitos nos âmbitos de cidadania, expressão cultural, etc.

PP: Podemos citar alguns desdobramentos positivos da Comissão da Verdade, como o próprio debate público por ela criado, indenizações dela resultantes, o aumento do espectro de vítimas, etc. O que faltou? Em algum momento se acreditou que o Exército Brasileiro pediria perdão à população LGBTQIA+? Era esse um dos objetivos ou seria isso uma utopia?

RQ: Houve trabalhos muito importante realizado pela Comissão da Verdade e eu estive diretamente implicado em alguns deles. Não somente com respeito às questões da população LGBT, mas num sentido mais geral, abrangendo as violências do Estado no Brasil durante o período da ditadura que era nosso foco enquanto Comissão da Verdade. Infelizmente o que a gente viu acontecer foi um bloqueio, muitos limites internos foram colocados com relação à metodologia de trabalho, entretanto, em minha opinião, o principal limite que nos deparamos foi o das Forças Armadas que nunca aceitaram sua responsabilidade diante do golpe de 1964 e das consequentes violações dos Direitos Humanos. Ao invés de colaborar com as comissões, aportando arquivos e informações, tentando ajudar a esclarecer certos fatos, as Forcas Armadas agiram para boicotar o trabalho desenvolvido por nós a certo ponto em que não conseguíamos avançar. Acho que passamos longe do nosso ideal, que seria que o comando das Forças Militares da nação pedisse desculpas ao país e que houvesse um processo de reparação, mas a gente acaba vendo o contrário quando entregamos nossos relatórios no final de 2015, já começamos 2016 com um golpe e o que vemos desde então é um processo crescente de autoritarismo que levou a eleição de um presidente que faz apologia à tortura, torturadores e etc. 

PP: Alguns registros de perseguições aos homossexuais, nos Estados Unidos, durante o Macartismo, apontam números próximos aos cinco mil. Há alguma estimativa de números de homossexuais (ou mesmo da população LGBTQIA+ em geral) brasileiros que foram presos, ou fichados ou de alguma forma monitorados – ou foram exilados? A comissão da verdade chegou a levantar algum dado a esse respeito?

RQ: Bom, a gente não tem números específicos, a comissão da verdade conseguiu chegar a números mais objetivos com relação aos mortos e desaparecidos a partir de todas as denuncias coletadas, mas mesmo esses números são subestimados porque é muito difícil oferecer uma exatidão passado tanto tempo. Esse foi um grande desafio da comissão da verdade, como reconstruir a verdade sobre esse período depois de tanto tempo – quando grande parte dos arquivos se perdeu com o tempo, pessoas que estavam presentes morreram, houve uma dificuldade real para essa reconstrução acontecer. Infelizmente isso veio realmente a prejudicar o nosso trabalho, não temos números específicos, mas temos casos diversos documentados dentre eles violações, torturas, prisões arbitrárias, discriminação no ambiente de trabalho, enfim, uma serie de violações dos direitos humanos da população LGBT. Mas nós acabamos não compilando isso em um número porque sabíamos que esse número daria a entender que é muito menos do que efetivamente é, nos limitamos a narrar com seriedade esses casos.

PP: Em 1987 a polícia deu início a Operação Tarântula. Podemos dizer que foi uma herança da ditadura? Quais operações semelhantes ocorreram no período ditatorial?

RQ: Durante a ditadura tivemos sim outras operações, a Operação Limpeza que mais tarde passou a ser Operação Rondão, foram operações policiais que se estenderam da década de 60 até 80, essas operações eram marcadas por um grande contingente de policiais que iam fazer a “higienização” de algumas regiões da cidade. Eles iam até esses locais, as regiões onde a população LGBT estava mais presente, especialmente travestis, e prendiam arbitrariamente essas pessoas, as torturavam, extorquiam e demoravam a soltá-las. Já a Operação Tarântula começou logo após o fim da ditadura, mas ela recriava esse mesmo modus operandi

PP: Há uma precariedade com relação à apuração dos dados de violência contra a população LGBTQIA+, muitos números são levantados por ONGs e grupos gays, como o GGB. Em sua opinião, por que o Estado não toma a frente dessas apurações e oficializa esses números e qual a mensagem fica para população a partir do momento que o Estado não dá a devida importância ao tema?

RQ: O Estado Brasileiro é muito omisso em relação a esses dados, nós não temos nem estatísticas confiáveis sobre a população LGBT, e é evidente que pautar corretamente as políticas públicas para essa população depende de informações atualizadas e precisas para que as mesmas sejam efetivas. Nós não temos os números relativos à violência, os dados disponíveis são coletados a partir da sociedade civil, do próprio movimento LGBT e é evidente que não sabemos a extensão real da violência justamente por não se conseguir informações vindas de todo o pais, afinal o Brasil possui dimensões continentais e diferenças regionais; muitas vezes a violência contra o LGBT é caracterizada de outra forma: por preconceitos da própria família ou, até mesmo, da vítima. Essas questões acabam por invisibilizar muitos casos de violência e é por isso que, mesmo com os números assustadores que temos no Brasil, colocando o país como um líder em assassinato dessa população, certamente esses números ainda são menores do que a realidade. 

PP: Para um movimento com um histórico de lutas e perseguições tão grande, que se intensificaram sob o manto da ditadura, mas que logrou a conquista de direitos fundamentais como o casamento, nome social, entre outros, como você vê o movimento e sua luta política atualmente?

RQ: Eu vejo um conflito dentro do movimento LGBT hoje em dia – por um lado se conseguiu, por meio de sua institucionalização, muita política pública, organizar grupos, eventos e denunciar a violência em todo o território nacional. Conseguiu atuar junto aos poderes de Estado, legislativo e executivo, ainda que não tenha conseguido aprovar alguns projetos específicos, mas sempre com boas bancadas representando a população LGBT e defendendo seus direitos e, inclusive, no judiciário, onde se deu a conquista da maioria dos direitos logrados nos últimos dez anos. Por outro lado, vejo que o movimento ficou refém dessa institucionalização e normatização, ou seja, dessa lógica de Estado da qual depende a cidadanização da população LGBT e suas lutas por direitos e a gente nota que, quando um governo fundamentalista, populista e religioso se apresenta, como é o caso do governo Bolsonaro, isso retira espaço já conquistado pelo movimento e gera dificuldades. Então, o que se coloca agora é um desafio muito grande para se reinventar, se repensar a partir desse momento que estamos vivendo. Acredito que um dos possíveis caminhos seja se reinventar mais longe do Estado, buscando apoio na sociedade civil, nas novas gerações e nas variadas formas de ativismo que existem hoje dentro do movimento, de forma mais horizontal e menos burocrática, o que pode fazer com que o movimento siga avançando. 

PP: Apesar da clara homofobia da ditadura, pouco se fala da homofobia dos grupos de resistência que compartilhavam uma ideologia de esquerda, tida como mais progressista. Respeitando as diferenças entre elas, uma vez que a ditadura tinha posse da máquina estatal, podendo exercer sua homofobia por meio de operações como a Rondão, me assusta muito o fato de que, mesmo diante de uma luta tão necessária como a luta por democracia e respeito aos direitos humanos, a homofobia ainda encontrava espaço no campo da esquerda. Uma contradição em si mesma. Como você explica isso?

RQ: A discussão sobre lgbtfobia dentro das esquerdas ainda está no seu início, temos casos desde o início do movimento, isso é algo que a esquerda acaba reproduzindo muitas vezes por um padrão comportamental vigente na sociedade, esses valores morais conservadores. Isso tem raiz também na forma como a esquerda se organizou em torno de certas doutrinas e perspectivas ideológicas que viam a homossexualidade como uma decadência burguesa, uma fraqueza moral que não deveria ser reproduzida pelos revolucionários, hoje temos muitos trabalhos representando isso. Então é importante compreender esses limites e falar de esquerda sempre no plural, porque ao mesmo tempo em que parte das esquerdas reproduzia a lgbtfobia, outra parte foi pioneira em reconhecer a diversidade sexual como uma questão de esquerda, ou seja, houve um acolhimento dessa luta como uma luta de esquerda. Vemos então, que esse foi o setor do espectro político que mais se engajou buscando esse fim, ao contrário da direita, que sempre teve uma visão mais conservadora do ponto de vista dos costumes e das liberdades, o que a fez demorar muito para começar a dialogar com pautas de diversidade sexual. Fato ocorrido no Brasil apenas após os anos 2000 quando alguns partidos de direita começaram a ter coletivos e setores LGBT. 

PP: Somos um dos países que mais mata LGBTs no mundo, estamos diante de um governo que fecha os olhos para nossa comunidade e, se possível, trabalha para retirar direitos já conquistados por nós. Como você vê o futuro próximo do movimento LGBTQIA+? Quais esperanças e desafios existem neste momento?

RQ: Acredito que esse governo, por pior que ele seja e que ele efetivamente é, o que ele tem nos mostrado é um desmonte das políticas de direitos humanos ou, até mesmo, políticas antidireitos humanos sendo implementadas pelo governo e seus ministérios, e também vemos a paralisia das políticas voltadas à população LGBT. Contudo, a gente tem uma perspectiva que me parece animadora, sou esperançoso com relação ao futuro e vou explicar porque. Após quarenta anos de existência organizada, temos um movimento muito mais organizado, muito mais robusto, muito melhor, muito mais diverso do que ele era décadas atrás. Conquistamos muitos direitos e avançamos muito nos últimos dez anos, conseguimos disputar a opinião pública da sociedade brasileira de maneira muito expressiva, vivemos mudanças importantes culturais de visibilidade, de presença, de produção literária LGBT em várias  áreas do conhecimento em universidades, de coletivos que se formaram por todo o Brasil, acho que tudo isso mostra o vigor desse movimento que vai enfrentar momentos difíceis numa conjuntura adversa como a gente vive mas não acho que vamos ceder, não vamos voltar pro armário, ninguém vai deixar de ser LGBT e se envergonhar disso só porque um governo conservador assumiu e trabalha contra nossos direitos. Acho que isso vai fortalecer e estimular ainda mais a mobilização do movimento que está acostumado a lidar com a perseguição, seja ela na ditadura, no nazismo ou no macartismo americano. Veja você que, em vários momentos da história, a população LGBT foi o bode expiatório, foi o grupo escolhido para se perseguir e se crucificar.  

PP: Dentre tantos compromissos, você encontrou tempo para fazer a curadoria da exposição “Orgulho e Resistências: LGBT na Ditadura”. Fale sobre esse trabalho. 

RQ: Essa exposição foi baseada na minha pesquisa e também numa pesquisa complementar feita pelo próprio Memorial da Resistência. A expografia está muito bonita e mostra esse cenário de perseguições e resistências, passando pelas produções culturais e artísticas até chegar à noite LGBT; a gente retrata também o começo, a formação do movimento LGBT organizado e tudo isso com um vasto material visual, fotos, vídeos e documentos de arquivos tanto públicos como privados. Então aproveito aqui o espaço, para convidar os leitores a comparecerem no memorial até 17 de maio, é só fazer sua reserva no site. Um catálogo virtual também está sendo produzido para que aqueles que não puderem vir conferir a exposição tenham de certa forma, acesso ao conteúdo.

PP: Para encerrar a entrevista num clima mais leve, queremos propor uma reflexão. Nós, da redação, estávamos debatendo sobre a pornochanchada, esse gênero que claramente é uma expressão da cultura brasileira, e foi sensação justo durante a ditadura, tendo seu ápice na década de 70. Sob um regime que pregava a moral e os bons costumes como argumento contra a população LGBTQIA+. Como você vê o sucesso desse estilo cinematográfico?  Seria esse o “ópio do povo” na década de 70, ou só a velha hipocrisia brasileira. Qual sua opinião?

RQ: Há certa tensão, um paradoxo nesse momento da ditadura porque, ao mesmo tempo em que temos essa censura moral feita nas artes em geral, você também tem a proliferação de guetos LGBTs, uma vez que StoneWall e as lutas por liberação sexual de Maio de 1968, que aconteceram em Paris, fizeram com que o mundo todo passasse a ver mobilizações de grupos que reivindicam sua sexualidade e igualdade de gênero. A pornochanchada é um gênero que mostra que sempre houve um interesse muito grande nessa questão erótica e pornográfica no Brasil, o que permanece até hoje. A sociedade brasileira é extremamente hipócrita, somos um país que, ao mesmo tempo em que consumimos esses conteúdos, produzimos uma violência extrema contra a população LGBT de modo geral.

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