Para além da bolha – As ‘virgens juradas (ou juramentadas)’ da Albânia: Burrnesha

As virgens juradas passam a ganhar respeito e poder quando sacrificam a prática sexual
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20.01.2021

Reuters / Jill Petters / Luis Dafos

O mundo é muito vasto em culturas, comportamentos e sexualidades, disso nós sabemos – ou deveríamos saber, e como a palavra ‘bolha’ tem sido utilizada com um novo significado, que é o de definir as pessoas ou povos que vivem a vida somente através de suas experiências e gostos, praticamente se alienando ao mundo a sua volta, precisamos pensar na bolha que nos impede de ver outras formas de cultura e suas relações com as diferentes sexualidades.

São tantas as maneiras que o mundo encara a comunidade LGBTQIA+ no planeta que comecei a investigar sobre o assunto. E encontrei várias histórias interessantíssimas… e desconhecidas para mim.

As diferentes culturas, passemos a entender, atribuem significações e valores diferentes quando se fala em gêneros sexuais, e muitas vezes eles são compostos pela história antropológica e as consequências socais e morais daquele lugar, nos levando a refletir sobre os papéis sociais e como estamos longe da aceitação do outro como um todo.

Começamos uma série de viagens a diferentes lugares indo para a Europa, mais precisamente no norte da Albânia, entre os montenegrinos e grupos étnicos Bálcãs (de maioria muçulmana), onde os papéis de homens e mulheres são bem definidos e seguem um código rígido de conduta.

O ‘Kanun’, como é chamado esse código de conduta, foi passado verbalmente para essa área do planeta nos últimos 5 séculos (do século 15 em diante), e nele diz, entre outras coisas, que a mulher tem a metade do valor de um homem a não ser quando ela é virgem. Esse valor é de 12 bois (sim, isso mesmo, 12 cabeças de gado).

Baseado no patriarcado, tem sua linha patrilinear – as riquezas são herdadas pelos homens da família – e patrilocal – depois de casadas as mulheres vão morar com a família dos maridos. Elas não podem votar, usar relógios, entrar em vários tipos de estabelecimentos, dirigir, ganhar seu próprio dinheiro, beber, etc. Sendo fadadas a cuidar da casa e dos filhos, e sendo tratadas como propriedade da família onde moram.

Nasce uma virgem jurada

Em meio a tanta repressão, um dilema surgiu: caso o homem da família morra e não se tenha um substituto homem, a família estaria fadada a morrer, pois as mulheres que restaram não teriam poder para nada em relação ao sustento da casa. Assim, nasciam as virgens juradas: que são mulheres que fazem um ‘voto de castidade’, prometendo jamais terem um relacionamento na vida, para ganhar o status de um homem: elas passam a usar roupas masculinas, ganham o direito de serem chefes de família, podem usufruir das companhias dos homens, mudam seu nome para um nome masculino e passam a moverem-se livremente.

Se elas cumprirem o voto de castidade até o fim da vida, ganham o respeito da comunidade e podem inclusive liderá-la. Mas se descobertas não cumprindo o voto, podem até serem mortas.

Com o começo da prática, algumas ramificações podem ser refletidas aqui:

  • Há a possibilidade da própria família, quando a menina é pequena, ensiná-la a ser uma virgem jurada, para garantir que a família tenha uma pessoa capaz de sustentá-la caso alguma coisa aconteça aos homens;
  • Mulheres que queriam fugir de casamentos arranjados, com o pavor do que isso implica, também começaram a fazer o voto da virgem;
  • Outras, percebendo o destino que aquela região dá ao sexo feminino, fazem o voto da virgem para ganharem autonomia, poderem trabalhar, e tentarem ser independentes ao máximo e serem donas de si – dentro do possível, repito;
  • Lésbicas também começaram a fazer o voto da virgem para não serem obrigadas a se relacionarem com homens, a se casarem, podendo, pelo menos, se livrarem dessa parte. Mas, ao mesmo tempo, matando sua vida afetiva.

E quando bate o arrependimento? Existem casos de virgens juradas que se arrependeram, desfizeram os votos e casaram-se, voltando a ‘ser mulher’ e a seguir os códigos de conduta restritos. Mas a maioria, após experimentar a liberdade conseguida, e com medo de que a comunidade as isole por não terem conseguido cumprir o voto de virgem jurada feito em cerimônia com 12 anciões de testemunha, continuam até o fim.

O fato é que a grande maioria das virgens juradas existentes na Albânia são idosas: quase todas passaram dos 50 anos. Dizem que esta prática está fadada ao fim, visto que cada vez mais com o progresso globalizado as mulheres daquela região vêm ganhando mais poder, liberdade e direitos. Mas, como tudo nessa vida é ditado por regimes políticos e religiosos, poderemos ver ainda algumas virgens juradas ao longo dos anos vindouros.

Para refletir

Além das questões de as lésbicas poderem se utilizar das virgens juradas para escapar dos homens, mesmo significando o sacrifício da sua vida afetiva, podemos dizer também que as virgens juradas podem ser uma aceitação formal para aqueles que se identificam como homens trans. Não estamos falando aqui ainda, sobre as questões da mastectomia (cirurgia onde os seios e glândulas mamárias são retirados) e tudo mais, mas sim por serem vistos como um homem – um “igual”.

Aqui também podemos revisitar as noções de masculino e feminino como construção social. E o quanto a visão dos poderes de um e de outro dependem de cultura, local, história e religião.

Outro fator importante que não se pode esquecer é que ali, no norte da Albânia, ninguém tenta esconder o ensinamento que o planeta todo segue: a de que os homens se acham mais valiosos do que as mulheres. O masculino se vê como herdeiro natural do planeta e, por isso, tem que ser adorado e respeitado por todos os outros seres habitantes do mesmo local que ele, ou seja, da Terra.

Cabe aqui perceber que as virgens juradas passam a ganhar respeito e poder quando sacrificam a prática sexual. O sexo continua norteando tudo, numa forma quase sadista de dizer que para ser vista como uma igual, a mulher deve negar o prazer sexual, numa punição desumana em nome de “poder andar com os meninos na hora do recreio”.

Quando falamos das desconstruções necessárias e diárias que temos que fazer para que o mundo seja um local de igualdade de gênero, podemos analisar o caso das virgens juradas como o exemplo explícito do que uma sociedade que enxerga o masculino como ser superior pode causar naquele ser que ele acredita ser inferior.

Que as virgens juradas passem, muito em breve, a ser somente um pedaço da história da humanidade, de luta e sobrevivência do feminino. De força e garra de mulheres que se utilizaram do que podiam para terem direito à liberdade e vida. E do quão nocivo o machismo foi, é, e continuará sendo até ser eliminado.

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