Dona de uma voz potente e singular, surge Maria Alcina Leite, com seu jeito doce e astuto, a cantora chega para o ensaio fotográfico com trajes de um mero ser humano comum, nada comparado com seus figurinos apoteóticos repleto de brilhos, sua risada e carisma cativa a todos do Espaço Lady Fina, na região da Vila Mariana, em São Paulo, local onde nos encontramos.
No dia 22 de abril, a cantora completa 68 anos de vida, data bem propicia para o Brasil que a descobriu e a lançou para os quatros cantos do país. Encantada com a locação, Alcina se prepara durante quase duas horas para dar início a sessão fotográfica, em um camarim improvisado no segundo andar, ela conversa sobre vida pessoal e sua agenda de shows com o seu maquiador e personal stylist, Guilherme Rodrigues, responsável também pelos figurinos da paraense Gaby Amarantos.
Natural de Cataguases, em Minas Gerais, a cantora vem de uma família de oito irmãos, somente ela seguiu na carreira artística, mas nem tudo foram flores na vida da cantora para chegar ao sucesso, no início, trabalhava de operária em uma fábrica e servente de escola, nas horas vagas se dedicava a sua possível carreira artística. Quase 20 anos sem gravar, a cantora arregaça as mangas e retorna aos holofotes. Ao sair de seu camarim, Maria Alcina está pronta para a entrevista e ensaio, com 45 anos de estrada, prestes a lançar seu novo trabalho com canções de Caetano Veloso, a artista sabe bem a que veio e não é preciso dirigi-la para as poses. A entrevista completa você confere abaixo:
Portal Pepper – Como descobriu sua paixão pela música?
Maria Alcina – Fui descobrindo a questão da música comigo, na escola, Grupo Escolar Coronel Vieira, onde eu estudava, havia canto, na minha sala no quarto ano, precisava fazer um número musical e convidaram algumas pessoas, nesse momento minha voz sobressaiu, pois tenho uma voz de contralto e tudo que tinha na escola eu participava, ia para igreja fazer parte do coro, me apresentava nos parques, essa coisa surgiu na escola e foi se desenvolvendo dentro de mim e fui me descobrindo.
PP – Enquanto você trabalhava de operária de fábrica e servente de escola, você fazia a correria em busca de seu sonho?
MA – Eu trabalhei em vários lugares. Sou de uma geração que trabalhava mesmo sendo menor de idade, tínhamos até uma carteirinha de menor. Fora isso trabalhei em uma fábrica de macarrão, limpeza, até professora de crianças bem pequenas eu fui nesta escola, domingo que eu não trabalhava na fábrica de macarrão, eu ia fazer limpeza na casa dos meus patrões, e lá tinha música, pois na minha casa não tinha rádio, então eu ouvia música na rua, e eu adorava a hora de fazer limpeza na casa deles.
PP – Quando resolve deixar sua cidade e ir para São Paulo e Rio de Janeiro?
MA – Em Cataguases, quando meu primo Pedro Paulo, me apresentou Joaquim Branco, um escritor que escreveu uma peça chamada “Não há vagas”, onde eu contracenava e cantava, ali que toda essa ebulição iniciou. Fui para o Rio de Janeiro, me tornei profissional no Festival da Canção, na sequência fiz teatro, em seguida fui para São Paulo e não parei mais.
PP – Seus pais apoiavam sua vocação?
MA – Meu pai tinha uma paixão por música, mas apoiava os homens, eu fui a única filha com fogo no rabo que correu atrás, somos em três mulheres e cinco homens. Com essa paixão do meu pai pela música, ele apoiava os homens a estudar, na fábrica havia uma banda, que possuía um maestro que ensinava música para eles, então todos meus irmãos sabem tudo de música. Eu estudei canto com a Dona Geraldina, quando eu cantava na igreja, no momento que chegou a parte escrita, senti dificuldade, pois precisava comprar o material, nessa hora não tive apoio.
PP – Seus pais chegaram a ver a Maria Alcina nos palcos?
MA – Meu pai faleceu, mas ele chegou a me ver no palco, e minha mãe é viva, vai fazer 92 anos.
PP – Você sofreu algum preconceito durante sua vida?
MA – Eu nunca parei por conta de algo que me disseram, até porque eu sobrevivo do que eu faço, da minha música, do que eu sei, se eu não sei muito, eu sobrevivo somente daquilo que eu sei. Fico observando todo mundo chorando “aí falaram de mim”, eu penso foda-se, vai caralho, deixa isso pra lá. Eu sou cantora e fiz valer o dom que Deus me deu, como faço isso valer, da minha forma, isso que importa. Em outra época a gente não podia nem chorar, se alguém dizia você é um negro, você é mesmo, hoje em dia, a situação é outra, temos várias formas de nos proteger.
PP – É difícil sobreviver de música?
MA – Claro, mas é fácil também, é ruim, mas é bom também. Não é a profissão, é a vida, e ela é assim.
PP – Quando começou a acrescentar os figurinos extravagantes em suas performances?
MA – Tudo começou na década de 70, na boate Number One, em Ipanema, no Rio de Janeiro, fui contratada pelo estabelecimento e eu andava super a vontade, então dois figurinistas começaram a fazer roupas esvoaçantes com muita transparência, era uma época muita extravagante. Precisava me destacar no palco da boate, minha voz era um diferencial, mas eu precisava sobressair no figurino também, então comecei a usar as roupas deles, fiquei seis meses aprendendo ali, se borrava a maquiagem, o borrão se transformava em outra coisa no meu rosto.
PP – Você foi casada duas vezes. O que leva de ruim e bom dos casamentos? Porque não houve uma terceira vez?
MA – Às vezes acontece uma terceira, uma quarta vez, mas não é divulgado. O amor, a vida, a parte afetiva é fundamental, isso eu trago de bom. Tem algumas coisas que eu fiz na questão de amor, romance e sexualidade que hoje eu não faria mais, por conta do meu amadurecimento, vejo as coisas de outra forma, mas foi bom.
PP – Sente falta de não ter sido mãe?
MA – Não, eu tive problema físico, no útero, então eu entendi o recado de que não era para ser, e não passou pela minha cabeça adotar alguma criança. O meu público é um caminho de maternidade também. Precisamos compreender onde estamos situados e nesse ponto eu entendi isso.
PP – Devido sua voz potente, já questionaram sobre seu gênero sexual?
MA – Sempre, recentemente fui ao teatro e uma garota pediu para fazer uma foto comigo, em seguida veio me perguntar se eu era homem ou mulher. Eu respondi na brincadeira para ela, quer saber de uma coisa? Nem eu sei (risos). Mas sempre existiu isso, a Maria Alcina é homem operado, sempre relacionado a minha voz e a minha postura feminina diferente. Com tantas coisas legais acontecendo comigo, eu não tinha tempo de ver se alguém estava falando algo de mim.
PP – Existe tempo ruim para a Maria Alcina?
MA – Eu enxergo quando o bode expiatório está ali olhando, quando alguma coisa não está legal. Eu aprendi a conviver com a alegria, eu não sabia muito bem que tinha isto, fiquei muitos anos sem gravar, e nesta pausa que comecei a entender muitas coisas. Quando você chega em algum lugar e ninguém está nem ai, entra sorrindo, pode não mudar nada em sua volta, mas essa atitude vai mudar você.
PP – Como definimos seu estilo musical?
MA – Eu não sei. Eu não estou num mercado que precisa ter essa resposta.
PP – O que acha do cenário musical atual?
MA – Acho que está muito aberto, por causa da internet, então essa dinâmica não pode ser esnobada, ela é real, com toda essa abertura tem uma galera, uma juventude boa, isso é maravilhoso. A música brasileira é riquíssima com seus sons e ritmos e tudo isso continua acontecendo.
Personagem Maria “Oncina”
PP – Já gravou 23 álbuns e um recente DVD, gravado no Ibirapuera. O que vem de novidade no CD com canções de Caetano Veloso?
MA – O acontecimento em si, já é uma novidade, mas o CD irá conter somente músicas do Caetano Veloso, e adoraria ter a presença dele no álbum.
PP – Sua carreira aconteceu em meio conturbado da Ditadura Militar. Você sofreu alguma represália?
MA – Devido a me apresentar de forma extravagante, fui punida por comportamento e fiquei 20 dias sem poder aparecer em veículos de comunicação, respondi processo por me apresentar desta maneira, por fazer alguns gestos, peguei a época do Médici, o filet mignon da época.
PP – Você acha que vivemos numa Ditadura disfarçada atualmente?
MA – As coisas mudaram, estou aprendendo uma porção de coisas, eu tenho um pouco de dificuldade de me situar ainda. Graças a Deus, não é igual naquela época, mas de um tempo para cá ficou algo mais acirrado.
PP – Você já teve alguma experiência com drogas?
MA – Já dei uns tapas numa “macoinha”. Eu experimentei e viajei num quindim, estava em Ipanema, entrei numa doceria, e viajei na cor do quindim. Viajar na cor do quindim é o fim da picada (risos). Até hoje eu não esqueço a cor do doce.
PP – O que você não faria novamente em toda sua trajetória?
MA – Opa! Faria tudo de novo, pior ainda (risos).
PP – O que é apimentar para você?
MA – Agora quem fala aqui é meu personagem “Alcininha Gourmet”, nome que ganhei do meu querido amigo Fernando Cardoso, amigo que me incentiva a fazer caminhadas com uma alimentação saudável, agora estou fina. Apimentar é tempero bom, coisa boa, pegar um pastel quentinho de carne, abrir ele no meio e colocar a pimenta, tem coisa mais maravilhosa que isso.
Alcininha Gourmet
PP – E na vida, o que é apimentar para você?
MA – Eu acho que a parte erótica da nossa vida é apimentar, eu só gosto disso, a parte erótica.
Agradecimento: Espaço Lady Fina – Rua Loefgren, 2481, Vila Mariana – São Paulo