por Leonardo Lichote
Em “Caravana Sairé”, seu novo álbum, Marcelo Jeneci segue o exemplo de mestres como Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro e Gilberto Gil no sentido de dar uma nova dimensão ao forró, tirando-o da prateleira de “regional” e o colocando em seu devido lugar: música pop. Ao fim de suas dez faixas, o ouvinte tem a sensação firme de que o passo foi dado – o gênero se afirma no disco numa linguagem de apelo internacional, acima e além das classificações. Não à toa, ainda na fase da concepção sonora do projeto, Jeneci se referia a ele informalmente pelo apelido de “sanfona sound system”.
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“Caravana Sairé” começou a nascer a partir dos diálogos de Jeneci com o cineasta pernambucano Helder Pessoa Lopes, que assina a direção artística do disco. A parceria é antiga: “Dar-te-ei”, canção do primeiro disco de Jeneci, foi feita a partir de um poema de Helder. No reencontro nos últimos anos, veio o desejo de formatar um projeto ambicioso – englobando mais dois discos numa trilogia, além de um documentário – para testemunhar essa caravana que segue sentido futuro, com rodas firmadas no chão pavimentado por quem veio antes.
O conceito de “Caravana Sairé” começa a se materializar já na escalação dos músicos. Em vez de buscar a formação percussiva tradicional do forró, Jeneci trouxe para o disco a cozinha típica das bandas de pífano, com a autoridade da zabumba de Mestre Bastos, dos pratos de Mestre Zé Gago e do pandeiro de Ivson Santos. Juba Carvalho completa o time da percussão, com tambores que testemunham a diáspora africana que veio bater no Nordeste brasileiro.
O paraibano Lucas Dan faz as sanfonas base, dialogando com as sanfonas melódicas de Jeneci, que também toca teclados no disco. Jeneci também assume os bass synths, cumprindo com Mestre Bastos a função do peso grave numa banda que dispensa o contrabaixo. Por fim, Bruna Alimonda compõe o coro feminino, ao lado de Juba, na tradição forrozeira.
A mixagem de Mario Caldato – produtor e engenheiro de som que já pilotou trabalhos de artistas como Beastie Boys, Bjork, Jack Johnson e Blur – arremata com um carimbo de urbanidade a pressão chão-de-terra de músicos como o zabumbeiro Mestre Bastos. Puro sanfona sound system.
“Sou o Estopim” (Antonio Barros e Cecéu) abre o disco ecoando simbolicamente no título a explosão dos bacamartes e do paredão sound system da capa. Sucesso com Marinês e Sua Gente, aqui o xote ganha certo sabor reggae com o órgão Hammond. O calor e a suavidade do canto de Jeneci estabelecem o tom do que se ouvirá pela frente, carinho de dança xamegada cantado ao pé do ouvido em sala de reboco.
A “Caravana Sairé” crava sua bandeira na península ibérica em “Lembrança de Um Beijo” (Accioly Neto), ao trazer ventos mouros na guitarra flamenca de Daniel Casares. Os versos afirmam a força do feminino (“Saudade já tem nome de mulher/ Que é pra fazer do homem o que bem quer”) sobre a dureza masculina (“O cabra pode ser valente e chorar/ Ter meio mundo de dinheiro e chorar/ Ser forte como um sertanejo e chorar”).
Clássico fundador não só de um gênero musical, mas de um Nordeste, “Baião” (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira) é visto sob uma perspectiva nova ao ser introduzido por xequerês, numa marcação que traça uma conexão com a música indígena. O som marcante do Hammond amplia o território demarcado, estabelecendo marcos atemporais. Um grito de Erasmo Carlos sampleado anuncia o solo do órgão:
“Minha intenção é dizer que a Jovem Guarda e Luiz Gonzaga sempre andaram de mãos dadas dentro de mim”, explica Jeneci. Em tempos em que a instituição casamento vem sendo repensada e remodelada de várias maneiras, “Amor Não Faz Mal a Ninguém” (Onildo Almeida) é declaração filosófica-ética sobre o amor frente ao compromisso, com simplicidade e profundidade da sabedoria popular: “Se casamento fosse bom/ Não precisava testemunha/ Pra que padre, pra que juiz/ Se o que faz a gente ser feliz/ É amar, amar, amar/ Amar, amar e querer bem/ Amor, amor, amor/ Amor não faz mal a ninguém”.
“Devagar” (Jorge de Altinho) segue na reflexão sobre o amor. Tocada originalmente em festas de vaquejada num andamento mais acelerado, a canção manteve a energia, mas ganhou ritmo mais ralentado. Como pede a letra, aliás: “Devagar, que o santo é de barro”.
“Olha Pro Céu” (Luiz Gonzaga e José Fernandes) e “Felicidade” (Jeneci e Chico César) aparecem juntas num arrasta-pé. A aproximação deixa evidente que o clássico de Gonzagão e o maior hit de Jeneci, de alguma maneira, vêm de um mesmo lugar. Um lugar de afirmação da alegria de incêndio e de chuva. É também a única referência ao universo junino no disco, atestando a importância da festividade no imaginário do Nordeste, porém marcando que esse imaginário, diferentemente do que o Sudeste muitas vezes pensa, vai muito além das fogueiras e bandeirinhas.
“Vem Morena” (Luiz Gonzaga e Zé Dantas), outra da lavra gonzaguiana, é costurada pelos pífanos de Junior Caboclo. Eles abrem a gravação, anunciando a canção ao mesmo tempo amorosa e sensual: “Esse teu suor sargado/ É gostoso e tem sabor/ Pois o teu corpo suado/ Com esse cheiro de fulô/ Tem um gosto temperado/ Dos tempero do amô”.
A parceria de Jeneci e Chico César reaparece em “Oxente”, lançada no álbum anterior do paulistano, “Guaia” (2019). Pandeiro de coco conversa com Hammond e congas nessa busca do amor que “tá aqui na minha frente” – apontando, como todo o disco, aliás, que a natureza do mistério é se revelar, não se esconder.
“Cadeira de Balanço” (Assisão e Lindolfo Barbosa) vem com onomatopeias (“Turim, turim, turim, turim/ É a cadeira de balanço que fazia assim”) conversar com a tradição da safadeza no forró. O resfolego da sanfona, ao mesmo tempo nervoso e macio, soa como convite – à dança, ao balanço, à malícia.
Última canção a ser escolhida para o disco, “Ai Que Saudade De Ocê” (Vital Farias) se fundamenta sobre a saudade – a mesma saudade que fundamenta todo o disco, como saudade de Sairé, da origem. Uma saudade que, em vez de imobilizar ou entristecer, põe beija-flores pra voar. Em caravana.
Na capa de “Caravana Sairé”, Jeneci aparece vestido com a indumentária de bacamarteiro. A tradição é uma das memórias que o compositor guarda de Sairé, cidade do interior pernambucano onde passou parte da infância. A imagem, porém, traz informações que ultrapassam a mera celebração afetiva de uma festividade testemunhada pelo olhar do menino. Porque o novo disco de Jeneci é profundamente Sairé, mas é também, em igual medida, caravana.
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“Na foto da capa, tenho um paredão de sound system atrás de mim”, atenta Jeneci, que cresceu em Guaianases, na Zona Leste de São Paulo. “Em vez do tradicional lenço da roupa do bacamarteiro, uso correntes e braceletes, acessórios metálicos que ilustram esse urbano metropolitano da periferia de quem vem da raiz nordestina. Também declino de usar a bota, que troco pelo tênis aerodinamizado pela rua da metrópole. É uma representação do que se colidiu em mim”.
A capa, portanto, traduz em imagem a viagem que Jeneci estabelece em “Caravana Sairé”. Ou melhor, as viagens: de sua família que saiu de Pernambuco para São Paulo em busca de oportunidades, à semelhança de milhões de outras famílias; de sua música que se espalha por mil trilhas, de Arnaldo Antunes a Vanessa da Mata, desde seu disco de estreia “Feito Pra Acabar” (2010) até aqui; da sanfona que parte das mãos de consertador de seu pai e chegam às suas mãos de tocador; dos bacamarteiros e das manifestações artísticas populares que eles representam; do tempo que se desloca do século XIX ao século XXI arrastando Luiz Gonzaga e sound system… Enfim, dos êxodos que marcam a cultura brasileira.
“Uma vez que entendemos o que era o projeto, a primeira providência foi pegar avião, vir pra Recife, pegar um carro e ir pro interior. Antes de pensar repertório, de qualquer coisa, fizemos viagens pra conhecer os maiores sanfoneiros das menores cidades”, brinca Helder.
A caravana pré – “Caravana Sairé” de Jeneci e Helder passou por lugares como Exu, onde visitaram a casa onde Gonzaga nasceu, e Tacaratu, onde passaram dois dias em território Pankararu e vislumbraram origens indígenas das melodias dos aboios.
“Foi uma imersão nesse universo pra responder aquela pergunta da música de Gil: “De onde é que vem o baião?”, explica o diretor artístico. “Não só do ponto de vista afetivo, a partir das memórias de Marcelo, dessa vida vivida em meio a sanfonas e sintetizadores. Além disso, tinha a busca mesmo pela compreensão da coisa. Fomos em busca de pessoas que tocavam sanfona de oito baixos. Conversar com Onildo e se dar conta que a música “Feira de Caruaru” não nasceu espontaneamente num banco da feira, mas sim do empenho de um compositor. Todo o trabalho é costurado a partir dessa ambiguidade, entre resgate e projeção”. Ouça o álbum na íntegra: