No último mês, fui presenteado com o filme “M8 – Quando a Morte Socorre a Vida”, filme nacional dirigido por Jeferson De, protagonizado por Juan Paiva e um elenco estelar de artistas negras e negros. O filme conta a história de um jovem negro que ingressa como cotista na faculdade de medicina e que durante as aulas de anatomia se questiona sobre os cadáveres que estão à disposição para serem estudados, todos são negros. A partir deste mote seguimos a trajetória de Mauricio, mas o que me chamou a atenção vai além do protagonista, está em sua mãe, Cida, que é interpretada pela fenomenal Mariana Nunes. Numa das cenas que para mim foi a mais marcante, durante a discussão com seu filho, ela solta a máxima: “Cale a sua boca que eu sou sua mãe! Cale a sua boca que é uma mulher preta que está falando!”
Esta cena diz muito sobre a figura que é o alicerce de muitas famílias brasileiras.
MILITÂNCIA – DESVALIDAR ESTAS LUTAS POR CAUSA DO CARÁTER DOS LUTADORES É NÃO OLHAR NO ESPELHO
A mulher negra faz parte de quase 28% da população do Brasil e mesmo assim sofre com a invisibilidade, até mesmo de outras mulheres não-pretas. Sua história é quase que anulada e infelizmente isso não é novidade, já que desde a escravidão fora negada a nós ter uma alma, pelos ditos “civilizados”, nos igualando a animais ou mesmo coisas.
Durante esta negação, nos foi apagado a família, a história e o nome. Muito mais que colocar grilhões e máscara de flandres, os escravagistas exterminaram as existências dos escravizados e das escravizadas, separando-os de suas famílias da mesma forma que separamos os animais de suas crias.
Hoje quero trazer à memória, ou ao conhecimento, a existência de algumas mulheres pretas que deixaram seu legado saindo do ostracismo. Mulheres estas que abriram os caminhos para que a nossa geração usufruísse de sua trajetória, e para abrir caminho nada melhor que iniciar com a história de uma mãe, Mãe Luzia (1854-1954). Segundo o Dicionário Mulheres do Brasil, Mãe Luzia “aprendeu com sua mãe a ‘pegar as crianças’ e nesta atividade de parteira, se consagrou como uma das figuras mais queridas da região amazônica. Nascida em Macapá, no estado do Amapá, é considerada a primeira ‘doutora’ do estado”. Tinha sua casa sempre cheia, recebia visitas até de autoridades políticas. Seu nome foi dado à maternidade e à rede de Parteiras Tradicionais do Amapá. Já pensou em quantas vidas foram salvas pelas mãos desta mulher?
Mãe também foi a doceira lendária Benta Maria da Conceição Torres. Negra, viveu no Rio de Janeiro no início do século 19. Mãe Benta inventou uma receita especial de bolinhos feito com ovos e açúcar, fazendo com que fosse imortalizado seu nome como parte da culinária típica brasileira. E, em potência de mãe, trago a vivência de Luíza Mahin. Mulher bonita, altiva, sofrida e vingativa. Foi princesa da tribo Mahi, na África, morou na Bahia, e foi considerada pagã por ter recusado o batismo e a doutrina cristã. Esteve envolvida nas articulações que levaram à maior revolta de escravizados entre as tantas ocorridas na Bahia nas primeiras décadas do século 19, a Revolta dos Malês, e fez de sua casa quartel-general destas revoltas. Aproveitando de seu trabalho como quituteira, Luíza despachava mensagens para outros rebelados, sendo uma espiã. Se tivessem vencido, ela teria sido empossada Rainha da Bahia Rebelde. Luíza Mahin foi mãe de um dos maiores abolicionistas do Brasil: Luís Gama.
Da Bahia também é a história de Maria Felipa de Oliveira, marisqueira que durante as lutas de Independência da Bahia, foi responsável por levantar um grupo de mulheres negras e indígenas, para impedir o avanço dos soldados portugueses que desembarcavam na Ilha de Itaparica para atacar a Bahia, em 1822. Segundo conta a pesquisadora de patrimônio cultural e histórico Eny Kleyde Farias, autora do livro “Maria Felipa de Oliveira: Heroína da Independência da Bahia”,“…as mulheres seduziam os portugueses, levavam pra uma praia, faziam com que eles bebessem, os despiam e davam uma surra de cansanção”. Assim, depois do feito, as embarcações portuguesas foram incendiadas e isso ajudou na vitória baiana.
Da Ilha de Itaparica vem a vida de uma mestra de samba de roda, samba amarrado e samba chula: Dona Aurinda Raimunda da Anunciação, ou como muito é conhecida, Mestra Aurinda do Prato. Aos 86 anos, continua raspando a faca no prato com galhardia nas rodas de samba ou mesmo nas rodas de conversa, que sempre vira festa. Desde muito jovem foi iniciada na música de seus ancestrais e na religião, ela é Yalorixá no Ilê Axé Cavanegi Sudan. Mãe de dez filhas, a matriarca sambadeira que vê sua descendência crescer, “já sou bisa, viu?”, ela se orgulha dizendo, conta com mais de 50 anos de atuação na cultura popular onde foi introduzida pelo seu falecido irmão, Mestre Gerson Quadrado (1925 – 2005) e segue à frente do Grupo Tradição da Ilha. Ela nos diz, “eu me sinto dona Aurinda antiga. Toco prato, canto, cozo saia pro grupo, o que vier na mente eu faço. Quando a gente quer aprender, a mente abre e a gente faz aquilo dar certo. Se tiver boa vontade, aprende. Será que dá certo? Por enquanto, ainda não deu ruim”. Para matar a curiosidade e acalentar o coração na ancestralidade, espia só os seus vídeos no Youtube ou seu perfil no Instagram – @mestraaurindadoprato.
Saindo do Nordeste e indo pra outra ponta, chegamos a Santa Catarina para conhecer Antonieta de Barros (1901 – 1952). Nascida em Florianópolis, órfã de pai e criada pela mãe, dona Catarina de Barros, teve que romper com muitas barreiras para conquistar espaços que, em seu tempo, eram incomuns para as mulheres, e mais ainda para uma mulher negra. Iniciou suas atividades profissionais como jornalista criando e dirigindo o jornal “A Semana”, nos anos 20. Na primeira eleição em que as mulheres brasileiras puderam votar e serem votadas filiou-se ao Partido Liberal Catarinense e elegeu-se deputada estadual (1934 – 1937), tornando-se a primeira mulher negra a assumir um mandato popular no Brasil e a primeira mulher a participar do Legislativo Estadual de Santa Catarina. Que feito para nossa história! Que feito para nosso o orgulho como povo preto! Que esperança!
E por falar em esperança, outra mulher que a traz em seu nome é Esperança Rita, viveu em Porto Velho, em Rondônia, no início do século 20. Foi fundadora do primeiro Centro de Umbanda da cidade, o qual era frequentado pelos políticos locais. Com a construção da ferrovia Madeira-Mamoré, em 1907, grande parte dos trabalhadores da companhia inglesa eram oriundos de Barbados, negros que haviam assimilado os modos e costumes britânicos, e assim, negavam suas tradições e africanidades. Já os migrantes nordestinos levaram para esta região a cultura negra de seus ancestrais. Sua vida foi uma tentativa de perpetuar laços culturais com líder espiritual na comunidade, onde o terreiro de Esperança marca a presença feminina na ocupação da Amazônia.
Foi lindo ver o que Jeferson De fez em seu filme, assistir as mulheres negras que estão em volta da história que é narrada e que na vida real estão à nossa volta também. Quem na periferia não conhece aquela senhora que vive na calçada e conhece a vida de todos da rua? Que nos viu crescer, que a temos como uma avó, que sempre torce pelo nosso bem, nos aconselhando, dando broncas ou até mesmo falando para nossas mães quando traquinamos? E a tia que nos atende na secretaria da escola? Ela está presente boa parte de nossas vidas, já que mesmo mudando de escola, temos aquela tia maternal que nos atende e nos conhece cada um pelo nome. O nome disso é cuidado. E que lindo contemplar a homenagem a Léa Garcia e Zezé Motta, vivendo estas personagens que não nos deixam – a vizinha e a secretaria escolar, respectivamente.
Quantas mais mulheres pretas para nos orgulhar com aquilo que deixaram e que nos são desconhecidas, precisamos resgatar estas histórias para o nosso bem, para o bem das próximas gerações. Queria falar de muitas outras, mas este texto se tornaria um livro.
E aí? Qual mulher negra faz parte da sua vida? Qual a história dela? Não permita que a tradição de apagamentos de nossa saga continue agindo, vamos trazer à tona a existência delas, pois também esta é a nossa existência. E mais ainda, vamos ouvi-las contar suas próprias histórias.