LAFOND, VÍRUS E JEISIEKÊ: A ARTE UNINDO GERAÇÕES

QUANDO A ARTE TRANSCENDE O VISÍVEL
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26.11.2021

Reprodução / Lanmi Carolina

Desde muito novo fui rodeado pelas resenhas causadas pelos apelidos que os colegas de rua me davam. Isso permeava nossas infâncias numa naturalidade que acompanha a vida toda. Para as crianças negras, receber apelidos torna tudo mais cruel. Muitas vezes acabamos por nos acostumarmos com aquelas novas identidades mesmo que pejorativas, e numa incapacidade infantil envolvida na ingenuidade e ignorância pela falta de informações, não lutávamos contra as ditas “brincadeiras de menino”.

TERCEIRO SINAL: A CENA É PRETA

Que garoto negro nunca foi chamado de “café”, “miquinho”, ou por nomes de celebridades tipo, “Pelé”, “Buiú”, “Tião Macalé”? Para nós, meninos negros com comportamentos que não correspondiam ao que era lido socialmente como masculino, as desdenhas eram mais doídas.“Lacraia” e “Jacaré” eram as menções, mas a campeã sempre foi “Vera Verão”.

Ser chamado de Vera Verão sempre causava engasgo e ódio. Jorge Lafond era um artista formidável. Bailarino, ator e comediante, era um modelo de artista negro que apresentava uma imponência, mas sobre nós, do lado de cá da tela, ser comparado com seu personagem mais famoso era uma das piores ofensas que recebíamos. Não queríamos ser comparados à alguém que gritava a plenos pulmões: “ BIXA NÃO! SOU UMA QUASE MULHER!”. Mesmo que em segredo a imitávamos reproduzindo a cena vista na noite anterior no humorístico.

Eita que anos 80/90 tem muito a nos ensinar!

Antes, aquele que era o símbolo de vergonha para as bixas pretas, hoje ganha ressignificação e nos empodera.

Vírus Carinhoso

Lafond deixou um legado que talvez nunca tenha imaginado. Sua passagem neste mundo foi um paradoxo para uma sociedade estruturalmente racista, machista e homofóbica. Ao mesmo tempo em que ganhava capas de revistas importantes, espaços em horário nobre na TV aberta, nos fazendo acreditar que era respeitado, porém ele também foi vítima de preconceitos, e um dos fatos mais expostos foi a sua retirada de um programa de TV por conta da presença de um religioso e como isso pegaria mal aos conservadores. Os mesmos que minutos antes riam das piadas de Jorge, o repudiaria diante da religião. E isso, dizem, foi um dos gatilhos que o levou a morte em janeiro de 2003, aos 50 anos.

Nestes dias fomos presenteados por uma obra audiovisual que vem como forma de homenagem a esta figura que é mais que uma personagem, uma drag ou coisa similar, como o próprio Lafond disse uma vez: “Vera Verão não é uma personagem, é uma entidade!”.

E assim, é belo o tributo feito pelo cantor e compositor baiano de 23 anos de idade, Vírus Carinhoso. Com o recente lançamento de seu novo EP, “Capella”, (ouça abaixo), em que “nasceu da vontade de ser ouvido, da necessidadede ter algo que eu me identificasse, as músicas vieram pra mim em um processo de experimentação dentro do estúdio da 999, tive a ajuda de JLZ que produziu as 5 faixas e deu a atmosfera precisa para minhas composições. Hoje compreendo o meu processo de criação como uma força inventiva que canaliza minhas vivências em expressões artísticas, tendo o próprio tempo como um componente fundamental para maturação da ideia, gosto muito de escutar o que as pessoas tem a dizer, pois a análise de outros olhos e ouvidos sempre agregam no processo”, nos conta Vírus.

Junto deste processo do clipe “Vera Verão” está Jeisiekê de Lundu, uma multiartista trans que além de assinar a direção de arte, também dirige o vídeo. Sua arte traz a ideia de “Capella”, com seu dourado misterioso ora futurista, ora nostálgico: “ele (Vírus) me mandou esta música pra escutar e fiquei escutando a primeira versão durante horas. Depois olhei em meu ateliê e comecei a criar o figurino, peguei alguns objetos e numa noite surgiu aquela cabeça que usamos e a partir disso fomos trabalhando o que é o clipe e a figura de Jorge Lafond. Algo catártico de choro e que diz também muito sobre mim. Tem muito a ver com crianças negras, trans e gays, que tiveram esse nome, Vera Verão, como ofensa, mas que conseguiram sobreviver e hoje se tornaram um sol, algo muito maior do que as ofensas e divinizaram aquele que era uma pessoa, mas hoje entendo como uma divindade”, compartilhou Jeisiekê.

Ela também nos lembra da resistência pela qual passou Jorge ao se colocar em um tempo que era difícil existir como artista homossexual e que sofreu as consequências por ser quem era. Hoje ainda estamos nesta luta, um pouco mais respirável, porém não menos opressor do que há 20 ou 30 anos.

Jeisiekê de Lundu

Trazer à existência aquilo que nos dá esperança deve ser nossa busca nestes dias tão conturbados, e indo nesta busca, vou me alimentando das referências de outros e Vírus tem muita coisa boa a nos apresentar: “me inspiro muito em minhas vivências e em pessoas que tenho por perto e que eu considero muito, como minha mãe que é uma pessoa brilhante que tive a honra de compartilhar a minha vida, meus amigos que a arte me trouxe como Celo Dut, Moxca, Young Piva e Dactes. Gosto muito de algumas referências musicais como Sun Rá, Arca, Jup do Bairro entre outros muitos artistas incríveis”.

Pois agora, vale degustarmos os trabalhos destes artistas e passarmos adiante, fortalecendo as próximas gerações.

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