Cerca de 10 anos atrás, filmes de temática espírita se tornaram um lucrativo filão nos cinemas brasileiros. Com mais de 4 milhões de ingressos vendidos, o auge do fenômeno se deu com ‘Nosso Lar’ (2010), escrito e dirigido por Wagner de Assis, o mesmo que hoje assina roteiro e direção desta cinebiografia do francês Hippolyte Léon Denizard Rivail, mais conhecido como Allan Kardec, pseudônimo assumido a partir da publicação de seu ‘Livro dos Espíritos’, em 1857.
Professor do ensino básico em Paris, Rivail (Leonardo Medeiros, o Dr. Aramis na série ‘Carcereiros’) era um homem da razão e dos métodos científicos, consequentemente bastante cético em relação às então chamadas “mesas girantes” que começavam a se popularizar em meados do século 19, em torno das quais, supostamente, estabelecia-se comunicação entre vivos e mortos.
Wagner de Assis deixou claro que não pretendia que seu filme fosse voltado apenas aos seguidores da doutrina kardecista. Por isso seu roteiro conduz com calma o processo de transformação de Rivail, dando ao espectador leigo, ou desconfiado, a oportunidade de ir acompanhando o protagonista em suas descobertas.
Nesse caminho, Assis é sincero ao não acobertar que, já então, se fazia uso desonesto da fé alheia, como em teatros que através de mecanismos no palco simulavam o contato com o além. Assim como também se banalizava a prática em grandes cafés que cediam seus salões para sessões descompromissadas das mesas.
Até por esses fatores, o professor se recusa inúmeras vezes a participar das reuniões dos praticantes mais dedicados. Todavia o desdém inicial, aos poucos, dá lugar à curiosidade. Espantado com suas primeiras experiências, decide se aprofundar no estudo do fenômeno. Empregando métodos científicos de investigação, Rivail conclui que a comunicação é autêntica, e a partir daí só há dois caminhos para o público.
Quem se deixou mergulhar no assunto com Rivail junta-se à parcela já adepta ao espiritismo. Para esses, inevitavelmente o envolvimento emocional com o filme passa a ser muito maior, à medida que o educador, agora já publicamente conhecido como Allan Kardec, começa a sofrer perseguições da Igreja e do governo, ao mesmo tempo em que vivencia conexões cada vez mais fortes com o sobrenatural.
Para os incrédulos, resta o deleite em contemplar direção de arte, fotografia e figurinos impecáveis, mas também a chance de observar um curioso paralelo com a atualidade. Coincidência ou não, lá está um professor que contesta a intromissão religiosa nas escolas primárias de seu país, que mais tarde tem seus livros censurados (e até queimados), e ainda vê as reuniões espíritas proibidas pelas autoridades. Difícil ser professor e integrante de minorias religiosas.
O pior é ver parte da população, incitada por líderes da Igreja, e com a anuência do governo, se voltar violentamente contra esses praticantes. É nesse ponto que ‘Kardec’ mostra algo além de um filme institucional sobre o espiritismo, colocando à prova os valores democráticos da cota cética da plateia. Pois a questão, aqui, é a defesa da liberdade de expressão, do estado laico, e também da tolerância religiosa. Estará este espectador realmente disposto a lutar para que esses direitos sejam garantidos ao seu próximo, mesmo discordando de suas crenças?
Kardec – Brasil, 110 min, 2019. Dir.: Wagner de Assis – Estreou em 16/5. Assista o trailer: