São Paulo é a capital econômica do país, é nesta selva de pedras que muitos tentam a sorte grande, mas acabam se frustrando com os percalços da cidade. Aqui pode parecer tudo muito cinza, mas a terra da garoa tem cores, e são essas cores que acabam sendo manchadas de sangue por uma população intolerante. É uma cidade multicultural e acolhedora, ao mesmo tempo que acolhe ela fere. São Paulo é impiedosa e não dorme – os paulistanos vivem no modo automático de produção incessante – será que o rapper Criolo tem razão em mencionar em sua canção “não existe amor em SP”? Por trás de tanto concreto existe uma cidade pulsante, humanitária, acolhedora, receptiva e trabalhadora. Afinal, aqui é São Paulo, meu!
Essas questões são abordadas de perto pelo padre Júlio Lancellotti, 72 anos, natural do Belém, zona leste, de São Paulo, filho do meio de um almoxarife e datilógrafa, único que seguiu a vida religiosa e atualmente pároco da igreja de São Miguel Arcanjo no bairro da Móoca. Lancellotti é amado, odiado, ameaçado e até cancelado nas redes sociais pelo fato de defender a população de rua do Estado. Criou o projeto Casa Vida, onde abrigava crianças com o vírus HIV/Aids, mas com o tempo muitas cresceram e outras chegaram a falecer, hoje o projeto não esta mais sob a sua responsabilidade e abriga crianças abandonadas e doentes.
“São Paulo é uma cidade de muita contradição, desigualdade, é uma cidade que nesse momento esta vivendo uma crise humanitária em que a população de rua cresce de maneira assombrosa, que o número de ocupações de favelas de pessoas na miséria é imenso. Às vezes fico pensando se em São Paulo existe amor, porque existe muita opressão, muita violência. Não existe amor em São Paulo. Existe ambição, desigualdade e opressão. Tem muita gente boa na cidade, nos hospitais, nos asilos, nas unidades de atenção a população de rua, a cidade de São Paulo não é uma coisa só, o melhor da cidade é o povo”, comenta.
Por seu convívio com a população de rua, o padre recebe inúmeros ataques virtuais, ameaças políticas e da própria policia militar da cidade e muitas ofensas da vizinhança para que ele se retire do local. “Toda vez que eles [policia militar] pegam os moradores de rua para bater e agredir mandam recado pra mim, dizendo que vão me pegar também – isso incomoda porque a população de rua eles não controlam, é diferente, eles sempre olham como suspeitos, sempre geram medo, é o que a gente chama de aporofobia, o rechaço ao pobre, nossa cidade é uma cidade aporofóbica, e as estruturas constitucionais são aporofóbicas, elas têm medo de pobre e rechaçam o pobre. Fazem muita coisa contra mim, na internet, no meio de comunicação, eu já fui agredido pela GCM, pela policia militar, o motivo é sempre eu estar com os moradores de rua”, desabafa Lancellotti.
Após afirmar que o presidente Jair Bolsonaro possuía muitos seguidores mesmo com seu posicionamento violento e homofóbico, o político entrou com uma ação judicial contra o religioso e exigiu uma indenização por danos morais – o presidente perdeu a ação. “Não fui eu que ganhei, ele que perdeu. Ele que movia a ação contra mim, eu só falei o que ele diz e faz que é homofóbico, racista e machista, quando eu falei ele se ofendeu”, pontua. “O importante não é ser paulistano nem brasileiro, o importante é ser humano, eu posso ser paulistano e ser desumano. Ser religioso não é sinônimo de ser humanizado – o que é importante é a convivência, o pluralismo e a humanização. As minorias estão sendo esmagadas nesse momento no Brasil. O genocídio da juventude negra, o fim dos quilombolas e a destruição das comunidades indígenas. Eles são sempre dizimados e atacados”, finaliza Júlio Lancellotti.