Abordando o feminicídio em suas várias formas, o novo videoclipe da canção “Jazz Mulher”, da artista paraense Azuliteral, tem visual minuciosamente simbólico e chegou na última semana no Youtube. Trata-se da quinta música do álbum “Fluxa” a ter seu videoclipe lançado, sendo este álbum totalmente voltado às pautas mulheris.
MISOGINIA, NUNCA É SÓ UMA PALAVRA
Para a multiartista Azuliteral, “Jazz Mulher” é a canção mais sensível de seu álbum, pois aborda o feminicídio em sua letra, sobre como ele pode ocorrer literalmente, através da violência física, ou simbolicamente, como quando mulheres são submetidas a contextos que minimizam sua vivacidade, sua potência criativa.
A canção difere-se das demais músicas do álbum, sendo mais sóbria, envolvendo elementos de sons regionais na guitarra e na percussão. Azuliteral, cantora e compositora do single, descreve: “Desde quando comecei a sonhar com esse disco, eu sabia que alguma música teria de trazer um destaque maior para alguma das várias formas de opressão e ameaças que sofremos ao longo de nossas vidas. E a partir da leitura do “Trama das Águas” encontrei o poema ‘À Memória de minhas mais velhas’ da Fontel e enxerguei nele o refrão da música”.
CABELO É CORPO – TRAMAS DE RESISTÊNCIA E EXPRESSÃO
O clipe se passa em uma casa artificial, lembrando uma casa de boneca. Através dos elementos, a diretora de artes do videoclipe, Kamila Ferreira, criou um ambiente representando a morte simbólica. Onde, na verdade, expõe a redução da mulher enquanto esse elemento puramente doméstico e serviçal. Já a mulher-boneca, com sua roupa enfeitada, seu gestual engessado e os sorrisos forçados vêm para explicitar, através do exagero, a construção dos símbolos de feminilidade, nos quais o cuidado com a casa e com os outros integrantes da família são sempre apontados como tarefas óbvias e irrecusavelmente femininas. Todo o artificial é quebrado quando a personagem deixa escorrer uma lágrima e demonstra estranhamento:
“Há na personagem um contraste macabro entre sentimento e comportamento por ela estar sustentando um desconforto por aprovação social, por uma pseudo sensação de pertencimento e utilidade. A lágrima aparece para ela quase como uma surpresa, transbordando uma angústia que ela fingia não ver por não se sentir capaz de ir contra todo aquele mundo projetado para ela”, detalha Azuliteral sobre a significação do choro em sua interpretação. Ouça o álbum abaixo:
Em um dado momento, a personagem tenta abrir uma porta, mas ela não existe por ser apenas uma pintura na parede, dando a entender que não há um “lá fora” possível. Esse gesto demonstra o instinto de sobrevivência da personagem que ainda resiste, mas sozinha ela não consegue transcender essa estrutura que figura no inconsciente da maioria das mulheres desde a infância, com as brincadeiras de casinha e suas bebês-bonecas de plástico.
“’Jazz Mulher’ é também plataforma de cobrança de uma reparação histórica para aquelas que foram caladas e não vislumbraram justiça. A morte física, o direito de ir constantemente negado, o estupro – se é difícil ouvir nossas vozes em tom de denúncia sobre todas essas coisas, imagina vivê-las. Trago em ‘Jazz Mulher’ um lembrete: se calarem uma, outras levantarão suas vozes em memória das que se foram e isso faz com que nossas vidas não tenham um fim de fato, mas continuem através. Nessa perspectiva, a canção é um hino de resiliência e coletividade”, enfatiza Azuliteral.
“Fluxa”, uma variação feminina do termo fluxo, nasceu de um movimento interno de Azuliteral em buscar as razões pelas quais segue criando arte e atribuindo sentidos profundos a tudo o que lhe atravessa. “Incluo a terminação em “a” pra chamar o feminino pra dentro desse fenômeno. Aproveito a energia criativa do movimento contínuo da água para trabalhar o argumento central do álbum: tudo é transitório, o eu é transitório. Gosto muito de estar em movimento. Sou guiada pelo poder do espaço. Viajar, experienciar, acessar na solitude da distância a minha eu mais pura. Mas também gosto muito de voltar, tanto pro lugar de partida, quanto passar pelos mesmos caminhos e revisitar pensamentos e memórias. Eu sou Fluxa, transitória, inconstante e fluente”, descreve a artista.
As canções do álbum seguem sonoridades diferentes para alinhar com cada momento da vida da artista, trazendo os gêneros musicais popular brasileira, popular paraense e rock nacional. “Fluxa”, de Azuliteral, foi selecionado pelo edital Natura Musical, por meio da lei estadual de incentivo à cultura do Pará (Semear). Aperte o play: