Acheguem-se mulheres, vamos desabafar e nos acolher!
Quantas vezes você se sentiu enfraquecida, palavra engolida, gesto podado e voz silenciada por ser quem é, por ser mulher? Entre homenagens e lutas, o mês de março é um mês que se fala muito sobre mulheres, por isso gostaria de te convidar para trazermos reflexões e desabafos sobre como nos sentimos, principalmente nesse período pandêmico em que aumentou significativamente o número de violências contra mulheres dentro das próprias casas.
A mulheridade é uma construção que reage às forças paralisantes, performar esse lugar violentamente imposto enfraquece nossas singularidades. Não é divertido e tão pouco confortável não se sentir segura na rua e perceber que algumas partes do seu corpo, que você não gostaria, estão chamando a atenção. E não se engane, manas feministas e questionadoras, nós nos pensamos desconstruídas, mas a estrutura nos balança, diante do espelho somos todas contraditórias socialmente, mesmo em nossas lutas na tentativa de driblar o sistema opressor, somos pegas pelos pensamentos de comparação e autojulgamento.
ETARISMO – ESTRANHO PENSAR QUE “JOVEM” É ELOGIO E “VELHO” É XINGAMENTO
“Eu tô bonita? (tá engraçada). Eu não tô bonita? (tá engraçada). Me arrumei tanto pra ser aplaudida, mas até agora só deram risada” – música “A Lenda” de Linn da Quebrada – ela é artista multimídia e ativista, tanto em suas obras, funk manifesto, quanto em suas falas, ela questiona categorias de gênero, sobre como pode ou não, o nosso corpo ser, e afirma: “há muitas mulheridades possíveis de se construir. Há muitas formas de se ser mulher e por muito tempo ser mulher esteve em função do homem”.
Esse processo de ser e se sentir mulher respeitando a própria individualidade traz um movimento de digestão, o tempo todo, de marcas patriarcais paradas na garganta causando engasgos no próprio silêncio, um entalar de palavras não ditas, não desabafadas, porque quando o faz “fala demais”. Essa mulheridade construída e reconhecida caminha na linha do tempo, não em linha reta, mas passa por costuras sinuosas e espiraladas, de defesas e ressignificações. De Truth a Beauvoir existe uma longa jornada de feministas criticando o papel da feminilidade. Ser mulher é um desenrolar socialmente imposto de maneira tão forçada que fica difícil explicar como isso acontece, sem espaço para pensar, obedecemos: “não seja grossa, faça pose, não grite, cozinhe, case, aceite”. Crescemos performando um papel que na verdade é um obstáculo para externarmos o que realmente somos, pensamos ou sentimos.
LUZIA, BENTA, MARIA, LUÍZA, AURINDA, ANTONIETA E ESPERANÇA – A MULHER NEGRA TEM HISTÓRIA
Sexo pode até ser definido biologicamente, mas gênero é uma construção social, a masculinidade na puberdade não tem a cobrança de fazer nada com suas mudanças, enquanto a menina passa pelo processo imposto de alteração do que está mudando: depilação em dia, maquiagem, cílios grandes e curvados, unhas feitas, sem isso, é vista como menos feminina. Como se a feminilidade tivesse que ser criada e mantida, o natural desse corpo, o suor, os pêlos, o odor é socialmente reconhecido como sujo e desleixado.
A transmisoginia – termo usado pela política Queer – dá o limite e resolve quem pode e quem não pode ser mulher pelo padrão estético pré estabelecido, fazendo com que mulheres trans sejam julgadas pelo grau de feminilidade. “O problema da questão de gênero é que ela prescreve como devemos ser em vez de reconhecer quem somos. Seríamos bem mais felizes, mais livres para sermos quem realmente somos, se não tivéssemos o peso da expectativa do gênero” – Chimamanda no livro “Sejamos todos feministas”.
Sojourner Truth, mulher negra feminista, abolicionista e defensora dos direitos das mulheres que criticava a invisibilidade da mulher negra mesmo dentro do movimento, afirma que a “mulheridade não é ou está relacionada às características que constituem a feminilidade. Sua oposição ao essencialismo de gênero e à supremacia branca continua a influenciar as perspectivas feministas até hoje”.
É importante entender, como diz bell hooks, que o feminismo não é uma luta contra homens e sim contra desigualdades, ela questiona que o feminismo era para mulheres brancas e privilegiadas e que não faz sentido caminhar separado da luta de classes. Angela Davis fala de um feminismo “interseccional”, que busca convergir demandas de gênero com questões de raça, classe social, com o transfeminismo, o feminismo negro, o feminismo lésbico, questões que afetam as mulheres indígenas, migrantes, e do meio-ambiente.
A professora doutora em dança Márcia Mignac nesse sentido diz que não precisamos dar vozes às mulheres, isso elas já tem, precisamos dar espaço, ouvi-las.
Nesse mover-desabafo convido duas mulheres artistas, para em suas liberdades de serem e falarem, e na intenção de evidenciar suas artes, a responderem essa pergunta complexa e desestruturante: o que é ser mulher?
Como ela mesma disse, “embora esse não seja um palco, sempre foi um processo de libertação e de extravasar, transbordar, anuviar e desaguar”, ouçam suas canções, acolham sua história e leiam as palavras de Inaê Leoni:
“Me foi ensinado que ser mulher era algo sagrado e inatingível para mim. Meu corpo, que sempre foi feminino, fora por muito tempo subjugado para corresponder a um papel que ele não queria. Inconformidade foi o sentimento latente em muito tempo. De fato, me por em trânsito para o “Ser mulher” sempre foi o caminho que tracei, desde que nasci e tive consciência de mim mesma no mundo. Mas a vida tem me ensinado e repetido, num eterno ritmo de vai e vem (como o mar que tenho o prazer de trazer atrelado ao meu nome) que jamais serei essa mulher. Nunca, em nenhum momento, meu corpo alcançará essa meta social de mulher. Esse ícone mitológico, irreal e romantizado, colocado em um pedestal. Eu não serei ela. Ela não sou eu. Hoje em dia eu olho no espelho e todos os dias eu preciso dizer pra mim mesma “Sou mulher”. Não para eu ter certeza de quem sou. Eu sei quem sou. Sei onde quero chegar e trabalho todos os dias para isso. Eu repito sempre para que eu tenha força como Xica Manicongo, Tibira, e as minhas que se foram e as que se encontram em vida possuam para continuar viva e para se encantar. Não aceitar o lugar onde sou posta e construir, com minhas irmãs, a narrativa de minha existência. E sobretudo, não pretendo escapar de mim mesma: Inaê, negra, trans, educadora, atriz, cantora e mulher.”
Mulher de vento e fogo, performer, produtora e professora de dança, suas palavras plurais, nos abrem para a acolhida de não nos sentirmos sós. Ana Brandão que a força do seu mover seja ventania que derruba roupas nos varais:
“Neste convite para pensar algo sobre o que é ser mulher, um desabafo, me dá vontade de dizer o que desejo para nós, o que sinto de potência nas nossas muitas diferenças, abismos, encontros, identidades e afetos. Sinto – e tenho insistido em falar a partir do sentido conectado ao pensado – que nossos atravessamentos de gênero não estão ilhados dos nossos outros atravessamentos, mas enquanto mulher, percebo que temos muito para continuar a caminhar, construir juntas caminhos mais acolhedores para nossas possibilidades de sermos tantas e tão diferentes, pautadas tanto em nossos direitos jurídicos, quanto nas micropolíticas do dia a dia. Mas, se tem algo que gostaria de escrever, se for pra escolher algo pra dar mais atenção, por agora pelo menos, tem a ver com algo que reivindico no meu trabalho de dança solo “Dobra” (o da foto) e reivindico aqui: somos complexas e paradoxais, e temos direito de sê-las. Ter coragem suficiente para sustentar o que se é, em nossas contradições, é bastante coisa, e é uma delícia”.
Que sejamos uma rede de afetos e de apoio para questionarmos juntas os critérios construídos acerca da mulheridade. Quais são as mulheres que te inspiram, que te acolhem e que você gosta de ouvir? E sobre o que você gostaria de falar? Como diz Inaê, a primeira coisa que aprendemos como mulheres são estratégias de sobrevivência. E cada uma sabe a sua. Vez às vozes!
