Já se passaram 10 anos. E se você sentiu o peso dessa década – que voou, é verdade – imagine como se sentiram Ana Caetano e Vitória Falcão, cujo furacão se iniciou em um dia de novembro de 2014, quando sequer eram uma dupla, mas enviaram juntas um vídeo cantando para o produtor Felipe Simas.
A história virou História. E elas, Anavitória. Um nome só para ambas, como um projeto que rodaria Brasil e mundo, acumularia prêmios, views, plays e ingressos vendidos. O tempo também as transformou. Basta ouvir a primeira faixa de “Anavitória” (2016), o álbum de estreia, e ‘Se Eu Usasse Sapato’, que abre “Esquinas”, o quarto álbum de inéditas da carreira da dupla. O salto é brutal. “Agora Eu Quero Ir” é doce, quase inocente, enquanto a música de abertura do novo trabalho apresenta complexidade vocal, com as vozes entrelaçadas em refrãos marcantes.
“Se Eu Usasse Sapato” é desafiadora como primeira faixa de um álbum, mistura psicodelia, um quê de progressivo. Um anti-pop-formulaico, arisco de tal forma que o adicionar como música de abertura do álbum é uma mensagem clara: um recado de boas-vindas, mas também um aviso para o ouvinte se preparar na poltrona para o desafio que é a audição do novo álbum de , Anavitória. A dupla que surgiu com um furacão fofo na música pop agora canta uma vida agridoce. Também, deveras compreensível. Em dez anos, Ana e Vitória deixavam a vida de estudantes universitárias de Araguaína, no estado do Tocantins, para exercitar a arte de transformar sentimentos em canções. Há um movimento natural aí, também, agridoce, de maturação. Nesta década, elas passaram pelo grande primeiro rito de passagem da vida adulta: a chegada aos 30 anos.
“Esquinas” é puro suco dos 30 anos. Dos amores relampejantes aos corações partidos acumulados. Também de um grito de liberdade, do encontro da própria identidade (sonora, estética e temática, inclusive). O álbum soa complexo, intenso, flerta com psicodelia setentista e rock oitentista, em um caldeirão de referências solto e sem freio – depois dos 30, esquecemos algumas amarras, você vai perceber se não houver cruzado a barreira ainda. “Nem eu acredito em mim”, cantam juntas Ana e Vitória, em “Minto Pra Quem Perguntar”, uma segunda parceria seguida entre Ana Caetano e João Ferreira no álbum, a também segunda música do disco. Ferreira é, aliás, o grande parceiro da artista em termos de composição: são cinco parcerias (“Espetáculo Estranho”, “Água-Viva” e “Quero Contar Pra São Paulo” somam-se às duas já citadas responsáveis por abrir o álbum).
Por falar em parceria, a composição com o uruguaio Jorge Drexler (terceira do disco) é desoladora, apesar de não soar assim. Embora a roupagem seja leve, com dois violões dedilhados juntos acompanhados por uma percussão dinâmica, os versos revezados pela dupla martelam um vazio afetivo: “Você merece alguém que sinta o coração na ponta da língua segundos antes de te encontrar. E eu não sinto nada”, diz o trecho introdutório da música. “E não posso te dar o amor que você tanto espera. Para de esperar, então”. Cruel, sim, mas real, também. A verdade é que o início de “Esquinas” é surpreendentemente maduro nas temáticas e nas escolhas por melodias otimistas e propositivas, quase como se quisesse esconder as fragilidades afetivas – só permitidas a partir da quarta faixa do álbum “Ter o Coração no Chão” –, o que também tudo tem a ver com a chegada aos 30.
Afinal, ao ultrapassar a barreira da terceira década, você se sente jogado em uma realidade áspera da responsabilidade, inclusive afetiva. O mundo ao redor repentinamente espera que tenhamos as respostas para questões internas, como se virasse uma chave interna para ativar a sapiência da vida adulta. Spoiler: não é assim. A vida é vivida e só assim se conhece os sabores dela. “Ter o Coração no Chão” é profunda nesta percepção: “Quero estar contigo. Nada mais”, cantam , Anavitória. “Encontrei nas besteiras da rotina a maior beleza”, canta Ana. A guitarra que acompanha aqui viaja, o piano é pop. A declaração, derretida como deveria ser, não busca o impossível. A beleza está nos detalhes. “Que delícia é você, do começo ao fim”, elas cantam em uníssono.
“Ponta Solta” tem um início buarquiano, com uma nota martelada em repetição sombria, mas logo a música se desenrola por caminhos inesperados – tal qual é a surpresa de um novo amor. “Espetáculo Estranho”, que vem na sequência, é o oposto disso: a alegria e leveza são adaptadas para uma sonorização tensa, nervosa e arredia. “Água Viva” é candidata a hit de um disco não moldado para ser colocado em caixinhas. Letra de desamor, desamor, desalento. Daquelas que corações novos não sabem sentir. “Eu passo pela frente da sua rua, mas não ligo a seta”, canta Ana. “Os hábitos que desenhamos, eu desaprendo todo o dia. ‘As faltas vão doendo menos’, é o que você diria”.
Na narrativa do álbum, chegamos ao fundo do poço emotivo. A partir daí, nos reerguemos, mesmo que com novos altos e baixos. “Eu, você, ele e ela” traz uma nova dinâmica, quase como se enganasse por uma nova onda de otimismo, mas logo “Mesma Trama, Mesmo Frio”, recoloca a narrativa em um espaço de contemplação da solitude. Talvez seja “Quero Contar pra São Paulo”, a faixa mais intensa e exagerada. Traz uma nova esperança, como se pertencesse ao repertório de Cazuza em sua fase mais solar. Haverá, certamente, alguma diversão entre fãs para decifrar cada frase, momento e referência que pode existir dentro dessas letras.
Mas a verdade é que “Esquinas” é um álbum que narra fragmentos, memórias e existências. “Esquinas” é um momento de virada, de ruptura, de deixar para trás e um novo começo. As , Anavitória não são as mesmas de dez anos atrás. Nem eu, nem você. E do lado de cá, nos resta dar as boas-vindas aos 30 anos. É uma jornada intensa, para dizer o mínimo e não estragar a surpresa. Para esta nova fase, Ana e Vitória “mudaram o molho”, como brincam em um verso do próprio álbum: do mel para pimenta. Ouça o álbum na íntegra: