Em 2021, a Anvisa (Agência Nacional de Saúde) recebeu 33.793 pedidos para importar medicamentos à base de cannabis, superando as 19.120 solicitações registradas em todo o ano de 2020. A crescente demanda de pacientes que encontram resultados nessa terapêutica, para o tratamento de variadas patologias, têm pressionado a classe médica a se capacitar nesse sentido. Em 2015, a Anvisa tinha o registro de 321 profissionais que prescreviam derivados canabinóides. Hoje, segundo o órgão, são 2.100, um crescimento de 554,2%. No entanto, em um universo de 502.475 médicos atuantes no Brasil, o número representa apenas 0,42%.
Para requerer a importação de produtos à base de canabidiol, é necessário que o paciente seja examinado por um profissional médico legalmente habilitado que possa fazer a prescrição, com base no quadro clínico e em outros tratamentos já realizados. De acordo com a Anvisa, de sua parte, não há restrição para especialidades médicas que podem prescrever o canabidiol. Diante das evidências científicas acerca do potencial da cannabis medicinal para a saúde, a procura de médicos por formação técnica na área vem aumentando. A Wecann Academy, criada pela neurocirurgiã, Dra. Patrícia Montagner, por exemplo, que atua com cursos exclusivamente voltados para profissionais médicos, vê o número de inscritos elevar a cada curso realizado.
“A cada dia surgem novas evidências científicas sobre o potencial da cannabis medicinal, mas sem conhecimento, como o médico se sente seguro para prescrever? Por diversas vezes, estive diante de pacientes refratários ao nosso arsenal terapêutico habitual e, cada vez mais, eles e seus familiares me questionavam sobre a possibilidade do tratamento com cannabis e o fato de eu não dominar o assunto me incomodava”, lembra a Dra. Patrícia Montagner. “Não tive acesso a esse conhecimento na Faculdade de Medicina, nem na minha residência médica e, até hoje, temos poucas opções de livros e cursos qualificados que nos ensinem o passo a passo dessa terapêutica e como prescrever na prática, com segurança e bons resultados. É nossa responsabilidade nos apropriarmos desse conhecimento e oferecer aos nossos pacientes um tratamento com produtos à base de cannabis seguro, eficaz e assertivo”, completa a especialista, que tem em seu rol de atendimento mais de mil pacientes tratados com medicamentos à base da planta.
Para muitos a falta de informação e o preconceito são uma barreira que precisam ser quebradas, o uso da maconha para a área médica é extremamente importante, pois além de proporcionar uma qualidade de vida melhor ao paciente, em muitos casos, o uso da cannabis medicinal salva vidas. É o caso de Roseli Martins Bento Costa, de São José, Santa Catarina, que cuida de seu marido com o uso do óleo de cannabis – “Meu marido sofreu um traumatismo craniano encefálico, em 2018, ficou em coma por um período, e depois desenvolveu hidrocefalia, após alguns procedimentos que não surtiram efeito, a gente conseguiu ter o atendimento da médica que fez a aplicação da válvula de hidrocefalia e sugeriu o uso da medicação tanto na recuperação do trauma cerebral que ele ainda vem se recuperando quanto com relação ao quadro de convulsões que ele passou a apresentar”.
A falta de informação e um persistente estigma em relação à cannabis – com muita confusão entre uso medicinal e o uso recreativo, são hoje o principal empecilho para a popularização dos benefícios da Medicina Endocanabinoide no Brasil, avalia a Dra. Patrícia Montagner. A especialista ressalta que a prioridade, hoje, é combater a ignorância em relação ao assunto e, nesse sentido, a comunidade médica é a liderança natural e correta no esforço de esclarecimento da sociedade. Mas, para tomar à frente, precisa se preparar melhor para isso. “É hora de estimular médicos e outros profissionais de saúde a estudar e se preparar. Temos que formar gente com capacidade técnica para consolidar a terapêutica com medicamentos à base de cannabis no Brasil, profissionais que vão diagnosticar, prescrever, realizar tratamentos de potencial transformador na qualidade de vida de milhares de pacientes portadores de doenças graves, refratárias e incapacitantes”, salienta.
“As pessoas têm muito preconceito em relação à canabbis, como se o paciente pudesse ter alguma dependência com o uso do óleo ou que pudesse fazer mal de alguma forma, na verdade meu marido não teve muitos efeitos colaterais, no inicio ele tinha bastante fome, mas fora isso, hoje a gente não percebe nenhum efeito relativo a medicação, pelo contrário, uma melhora muito grande do quadro”, avalia Roseli Bento. “A dificuldade maior se da pelo fato que a gente sabe que no Brasil não é permitido o cultivo da planta, existem medicações que já foram liberadas, mas elas têm um custo muito elevado e isso acaba impedindo o acesso a medicação”, pontua.
Desde 2015, tramita no Congresso Nacional o PL 399/15, projeto de lei que regulamenta o plantio de maconha para uso medicinal. “Existem diferentes parlamentares lutando por essa regularização, mas um dos maiores entraves continua a ser ainda essa criminalização da cannabis por conta do uso recreativo da maconha, que é a mesma planta, porém com doses altíssimas de THC, que é o canabinóide, que tem efeitos psicodislépticos, responsáveis pela viagem e alucinações. Então isso é um entrave muito grande, tanto no meio governamental, como no meio médico, como para a população geral. Isso faz com que esse projeto de lei continue caminhando muito lentamente, frequentemente quando você acha que vai ter a aprovação, ele é interrompido de novo e parado no Congresso”, esclarece a Dra. Maria Teresa Jacob, pós-graduada em endocanabinologia, cannabis e cannabinoides pela Universidade de Rosário, na Argentina, é membro da Society of Cannabis Clinicians (SCC) e da International Association for Cannabinoid Medicines (IACM), com especialização em cannabis medicinal e saúde na Universidade do Colorado e cannabis medicinal no Uruguai.
Afinal, qualquer doença pode ser tratada com medicamentos à base de cannabis? “Existem estudos na maioria das patologias, tanto do sistema nervoso central quanto das dores crônicas, doenças do aparelho genital feminino, diferentes tipos de câncer, doenças neurodegenerativas, epilepsia refratária, doenças cardiovasculares. Como o sistema do canabinóide está presente em todas as células do nosso organismo e é um sistema de equilíbrio orgânico, isso é, ele entra em ação quando um órgão ou uma região está em desequilíbrio, para manter e recuperar o equilíbrio do organismo. Por isso que a cannabis medicinal, os endocanabinóides, que são as substâncias ativas da cannabis, podem ser utilizados nas mais diversas patologias, porque eles interagem e vão se ligar aos receptores desse sistema orgânico chamado sistema endocanabinóide”, explica a Dra. Maria Teresa Jacob.
Segundo informações da especialista, as doenças que possuem melhores resultados no tratamento são Parkinson, Alzheimer, epilepsia refratária, as dores crônicas – a maioria dos artigos publicados até o momento é no tratamento da dor crônica – doenças do aparelho genital feminino – endometriose, adenomiose, as cólicas menstruais -, distúrbios metabólicos – depois de alguns meses de utilização, ajuda a diminuir a glicemia (açúcar no sangue), controlar níveis de colesterol. Uma série de doenças que já existem estudos, porém todos realizados até o momento em vivo, são estudos pequenos, alguns randomizados e controlados, como deve ser feito atualmente pela medicina baseada em evidência, porque a criminalização da cannabis medicinal por conta do uso recreativo da maconha, fez com que os estudos fossem mais limitados. Em relação à cura, a cannabis é indicada para tratamento de doenças crônicas, doenças que na maioria dos casos, não tem cura, tem tratamento e controle. Então a maconha medicinal é uma medicação coadjuvante no tratamento de diversas doenças crônicas, quando o paciente não responde bem às terapias preconizadas, ela é uma alternativa extremamente interessante.
ALZHEIMER – UMA DOENÇA TRISTE E SILENCIOSA
“Procurei a ajuda da cannabis por volta de seis meses atrás, por conta de dor de cabeça, na cervical e na cadeia posterior do corpo em geral. Fiquei muitos anos com essa dor e tornou-se uma dor crônica que eu tenho já há 18 anos. O uso da cannabis foi melhorando pouco a pouco, porque a pessoa, quando tem dor crônica, infelizmente se acostuma com a dor. Então a medida que a cannabis vai melhorando as dores, os seus sintomas, o seu estado de humor, inclusive, é que você vai percebendo quanto você perdia qualidade de vida e quanto você está readquirindo qualidade de vida. A cannabis precisa ser prescrita por um médico, sim, porque é uma medicação, então não é algo que possa ser informal. Por enquanto, eu não tenho nenhuma restrição com a cannabis, mas isso é uma profissional da área da saúde que verifica para mim. Como qualidade de vida, melhora muito, mas não é imediato”, diz a jornalista Charlene Rejani, 55 anos, mãe de dois filhos.
“Existem atualmente vários medicamentos padrão farma, ou seja, feitos por indústrias farmacêuticas para utilização segura tanto em humanos quanto em animais, e esses produtos possuem concentrações e combinações diferentes das mais de 500 substâncias existentes na cannabis para uso em diferentes patologias. Então, o médico prescritor, que conhece bem as doenças que serão tratadas e que conhece a cannabis medicinal, analisa o perfil do paciente para escolher qual vai ser o medicamento ideal para ele tanto de acordo com a patologia como com o perfil do paciente, isso é o mais importante”, finaliza a Dra. Maria Teresa Jacob.