CABELO É CORPO – TRAMAS DE RESISTÊNCIA E EXPRESSÃO

SOMOS NOSSO CABELO, ELE NÃO É SÓ MOLDURA COMO COSTUMAM DIZER, MOLDURA LIMITA
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25.06.2021

Laetitia KY / Reprodução

Peço licença às nossas cabeças e licença às mulheres que nelas tocaram.

Licença pra falar de caminhos, estradas e tramas. Histórias de vida e resistência contidas num mapa de libertação. Seu cabelo fala de você, seu cabelo é você! Cada fio, uma linha com texturas, peso e estruturas diferentes, a ligação das cadeias de moléculas dão a forma, revelam um jeito único de existir em movimento.

Entre redemoinhos e embaraços, o convite para existir além da exigência do que tem que ser, está em ouvir seu próprio cabelo. Quantas vezes mudamos ou deixamos de mudar com medo de não sermos aceitas?  

“RESPEITEM MEUS CABELOS” – O RACISMO ESTÁ AÍ, SÓ NÃO APRENDE QUEM NÃO QUER!

Não fazer parte dos padrões de beleza capilares impostos na sociedade nos custam traumas que vão desde os apelidos na escola, a dificuldades na busca de emprego e a aceitação da imagem nas mídias. Essa cobrança ainda é maior com mulheres negras, a navalha da internet julga e define quem pode usufruir do padrão. Incomoda fazer a própria escolha? “Eu sou livre para usar o cabelo que eu quiser!” disse a ex-BBB, Camilla de Lucas, após comentários racistas sobre sua lace

A indústria da beleza se utiliza da rejeição e da inconformidade, o objetivo é a produção de corpos moldáveis pela sociedade. O capitalismo é a principal máquina de fomentação dos padrões estéticos, fazer mulheres odiarem a si mesmas é extremamente lucrativo. O que tem de tão inaceitável em nossos cabelos que precisam de tantas etapas e uma variedade tão grande de produtos? É tão bonito ver raízes se manifestando, mulheres de cabelo prata, mulher de cabelo lunar, uivando pra exprimir beleza para além da espremida caixa de tinta.

O padrão estético do gênero, fruto da sociedade patriarcal, dita que, o que é sensual é o que nos faz “mais mulher”. Caso contrário, “parece um homem”, aos olhos de quem? Cortou, mostrou a nuca, tem nome e gênero: é corte “Joãozinho”. Cabelo não tem gênero, não é simétrico, não tem como controlar. Nos anos 90 tinha um movimento forte contra o volume, domar era a palavra pra cabelos fora do padrão, precisava segurar de alguma forma, a impressão é que quanto mais se tentava “abaixar”, mais eles se armavam contra os olhares e as propagandas impostas. Cabelo é força da natureza, não adianta esconder, ele se rebela.

A vó Iracema quando criança, na roça, pegou escondida a tesoura e foi cortar o cabelo do milho pra deixar ser, quis mais, cortou o próprio, curto. Uma menina! Levou uma “pisa”, não pode! O pai percebendo o que era desejo, disse no ouvido: “corta o meu depois?”. Cabelo é mato, cresce e balança com o vento. Ela seguiu cortando o cabelo da família da adolescência até hoje. É gosto fazer a cabeça de outros. 

Géssica, que também cortava os cabelos da família, hoje é idealizadora do projeto itinerante @Tesourariasapas, “eu não sou barbeira, não sou cabeleireira, sou tesoureira. Desde que comecei a pensar na Tesouraria, eu pensei em acolhimento, espaço de conforto e de troca de experiências entre mulheres”. Ela vai em casa, com tempo, senta, sente, escuta, partilha vida, e nessa relação ela te ensina a ouvir o próprio cabelo e o que ele representa pra você naquele momento. “Não é só chegar e estabelecer um corte como acontece geralmente nos salões, é uma construção do que a pessoa quer, do que eu posso oferecer e do que vai ser construído”. Somos nosso cabelo, ele não é só moldura como costumam dizer, moldura limita. Pra ela, “cabelo é corpo”. Se você come, seu cabelo come, se você dorme, ele dorme, se você se atropela ele acelera e cai mais depressa, encerra ciclos. Perder cabelos pelo caminho, tipo árvore que perdeu as folhas e agora se prepara pra florir. O que fica é solo fértil, ori.

SOU BARBEIRA, SOMENTE NA PROFISSÃO!

Géssica também diz que nem todas as mulheres têm a oportunidade de conhecer a própria cabeça, porque a sociedade associa feminilidade ao comprimento do cabelo. Raspar a cabeça em alguns lugares é rebeldia, em outros, obediência. Esse papel de agradar nos tira a liberdade de escolher a partir de nós, de talvez sentir o vento na nuca e de tocar nossa própria cabeça. “Eu encontrei no meu cabelo muita cura e no cabelo de outras mulheres alicerces para seguir construindo”, declara.

Raspar, cortar, deixar crescer, pintar ou não, usar a lace que quiser. Escolher sobre como performar seu ser cabelo é um mover de resistência, expressão e desafio numa sociedade patriarcal e misógina. A artista feminista, marfinense, Laetitia KY, cria esculturas com seu cabelo, em sua página no Instagram ela faz poesias, brincadeiras e denúncias com suas obras de arte que partem das raízes, ela fala sobre a cultura do estupro em seu país e sobre o quanto o feminismo é inaceitável por lá.

Nosso cabelo é entrelaçado de histórias e expectativas. “Olhando para trás e andando para frente, tropeçando de vez em quando, inventando moda. É que eu também sou inventora, inventando todo dia um jeito novo de viver. Eu, Bel, uma trança de gente, igualzinho a quando faço uma trança no meu cabelo, divido em três partes e vou cruzando uma com as outras, a parte de mim mesma, a parte de Bisa Bia, a parte de Neta Beta. E Neta Beta vai fazer o mesmo comigo, a Bisa Bel dela, e com alguma bisneta que não dá nem para eu sonhar direito. E sempre assim. Cada vez melhor. Para cada um e para todo mundo. Trança de gente”. Trecho do livro infantil “Bisa Bia Bisa Bel” de Ana Maria Machado.

A força de crescimento dos cabelos se soma à resistência de nossas histórias. Cortar ou deixar fluir o crescer é libertar desejos manifestos na raiz e nas tramas do que é ancestral, que mesmo desconhecidos, estão no DNA, no desembaraçar dos nós na infância e na construção do ser mulher ouvindo as próprias escolhas.

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