‘BELA VINGANÇA’, DE EMERALD FENNELL, ESTREIA TOCANDO NAS FERIDAS DA CULTURA DO ESTUPRO

ÁCIDO, CORAJOSO E INOVADOR, LONGA PROMETE SER UM DIVISOR DE ÁGUAS DENTRO DO GÊNERO VINGANÇA
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09.04.2021

Divulgação / Reprodução

Você, provavelmente, já ouviu em algum lugar sobre o conceito de “cultura do estupro”. Caso não, aí vai uma breve explicação: o termo, que surgiu entre os anos de 1960 e 1970 em meio às primeiras grandes mobilizações feministas, faz menção ao ambiente no qual o estupro é prevalente e a violência sexual contra a mulher é não só normalizada como justificada pela mídia e cultura popular em geral. É uma ideia há muito tempo perpetuada, de forma alguma silenciosa ou velada, por meio do uso de linguagem misógina, objetificação dos corpos femininos e exaltação da violência sexual.

Pense rápido, quantos filmes e séries recentes você consegue lembrar que utilizaram o estupro como artifício de roteiro vago, apenas para chocar ou pior, engrandecer as personagens, como se fosse um teste de maturidade? Alô, Game of Thrones! Mais além, quantas cenas, em close, hiper sexualizadas lhe vêm à mente dos corpos femininos? Lembra da Margot Robbie medida ponto a ponto pela câmera em Esquadrão Suicida? Seja em tela ou nos bastidores, no cinema, a violência contra mulher é recorrente e naturalizada e, mesmo após toda a discussão ocasionada pelo Movimento Me Too, há muito por se fazer ainda.

Entre uma grande lista de nomes que tentam subverter o formato para questionar esse status, está o da mais que talentosa Emerald Fennell, showrunner da segunda temporada de Killing Eve, bem como a atriz por trás de Camilla Parker, em The Crown. Em seu mais novo filme, como diretora e roteirista, a cultura do estupro é retratada em um conto de cores pastéis, que por alguns foi chamado de terror, até mesmo no cartaz de divulgação da Universal Pictures, mas creio estar mais para uma comédia de erros. Estou me referindo ao longa Promising Young Woman, que no Brasil chega com o nome de Bela Vingança — uma versão adequada, mas que mata parte da simbologia do título original.

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Nele, Carey Mulligan interpreta Cassie, uma jovem que vive uma vida dupla: de dia trabalha em um café e durante a noite vai até os bares da cidade, finge estar bêbada em um jogo de gato e rato, para atrair os homens que gostam de tirar vantagem desse tipo de situação. A partir do momento que eles caem na rede, Cassie mostra sua verdadeira face: sociopata em uma trajetória de vingança. Aliás, é nessa parte que discordo sobre taxar o filme de “conto de terror”, porque dá a errônea impressão para alguns que se trata de uma história física e sanguinária, vide Doce Vingança (I Spit on Your Grave, 2010). Quando o que se encontra é algo muito mais cerebral, frio e ácido, jogando sal em grandes feridas ainda abertas.

A jornada de Cassie faz parte de seus esforços para vingar a melhor amiga, Nina, que cometeu suicídio após ser estuprada no alojamento do curso de medicina e foi desacreditada em inúmeras vertentes. Inclusive, em júri, já que o homem não foi punido por ser considerado um “jovem promissor”. Cassie abandona a universidade, todos os seus planos de vida e assume o lugar da justiça na busca por fazer com que os chamados “caras legais”, cheios de um futuro brilhante pela frente, paguem pelo que foi feito. Grande parte do filme fala a verdade sobre o que significa ser uma sobrevivente de agressão sexual e a falta de punição para os abusadores.

Fennell não se poupou em sua crítica à cultura do estupro e como ela permeia cada centímetro da sociedade. Apontando o dedo, por exemplo, para a constante tendência de sempre considerar o acusado uma vítima, até mesmo após que se prove o contrário. Como mulher, ao assistir o filme imediatamente me veio à mente mil e uma memórias particulares ou de amigas e conhecidas. Inevitavelmente, me vi em Nina, mesmo ela sendo apenas um nome sem rosto durante o filme todo. Assim como em Cassie, desesperada pelo perdão de uma culpa que nem lhe cabe. Pior ainda, me vi também nas mulheres antagonistas da história, justificando comportamentos masculinos. Afinal, são todos “caras legais”, não merecem ter seus futuros brilhantes arruinados por uma bobeira juvenil.

A atuação de Mulligan vem dando muito o que falar. Preferida ao Oscar para alguns, esquecida por outros, sem sex appeal suficiente para o papel segundo o jornalista da Variety, Dennis Harvey, que declarou em dezembro e, com certeza já se arrependeu, de que ela era “uma escolha um pouco estranha para uma aparente femme fatale reconhecidamente multifacetada” e que a produtora do filme, Margot Robbie, seria uma escolha melhor. Fato é que haters gonna hate, mas em toda a sua carinha angelical, Mulligan verdadeiramente encarnou Cassie em seu pior e melhor.

Ainda assim, mesmo em um filme de personagem como esse, o restante do elenco conseguiu orbitar o trabalho de forma marcante, acrescentando e muito à trama. Vide as participações de Laverne Cox (Orange is the new Black), Alison Brie (Glow), o clássico galãzinho Adam Brody (The O.C.) e o ator e comediante, Bo Burnham, que interpreta Ryan, o par romântico de Cassie. Inclusive, este é outro ponto que merece especial atenção ao se falar desse filme: o trabalho exímio de quebra de expectativas feito a partir dos tropos de uma comédia romântica. A jornada da heroína não seria completa se ela não encontrasse um chamado que a despertasse para a ressurreição e ele vem carregado dos clichês de amor, em Ryan. Um ex-colega do traumático curso de medicina.

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Atraente, paciente, bondoso, Ryan parece ser a chance para Cassie encontrar normalidade e, talvez, seguir em frente. Há uma cena em que ambos estão em uma farmácia, iluminada por muita luz neon, em uma quebra daquela realidade e, para surpresa geral, toca Stars Are Blind, de Paris Hilton e o filme se torna romântico. Diz a canção: “I don’t mind spending some time / Just hanging here with you / Cuz I don’t find too many guys / That treat me like you do (Eu não ligo de ficar um tempo aqui com você / Porque eu não acho muitos outros homens / Que me tratam como você / Esses homens querem me levar para dar uma volta)”.

Para você, o amor salva tudo e é capaz de criar sentido a uma vida que já se perdeu dos trilhos há muito tempo? Digamos que em Promising Young Womanfoi o amor por Nina que começou tudo, mas será que este é um sentimento capaz de se ressignificar em Ryan para guinar a trama para um novo horizonte? Considerando que perdão é um tema complexo, multifacetado e muito particular, creio que a sua resposta também será.

[Aviso: spoilers à frente ]

“É o pior pesadelo de qualquer homem ser acusado de estupro”, diz um determinado personagem em um momento. Ao que Cassie prontamente responde: “consegue adivinhar qual o pior pesadelo de qualquer mulher?”. Eu consigo e espero que você, lendo este texto e assistindo esse filme, também possa adivinhar a resposta. Há uma frase creditada a Tarsila do Amaral que diz que nenhum artista consegue escapar da influência do contexto, das ideias de seu tempo. Creio que ela cabe perfeitamente para definir o que significa ser uma mulher roteirista, diretora, atriz e conceber ao mundo um filme sobre uma mulher jovem e promissora, brilhante — porque Cassie é brilhante, a melhor aluna do curso de medicina, com uma jornada especial —, mas quebrada por dentro e por fora por ser vista como engrenagem de um sistema a qual não lhe permitem lutar, só aceitar.

O final do longa é a cereja do bolo realista. Se falássemos de uma epopéia clássica, Cassie venceria seus opressores e finalmente encontraria felicidade ou ao menos paz. Entretanto, como já foi dito, não é esse tipo de história. Ela os vence, em uma jogada de roteiro muito esperta, mas precisa morrer para que aconteça. Sobre isso, Fennel disse em uma entrevista à revista Vulture, que ao imaginar a personagem costumava se perguntar o que faria ou poderia fazer nas situações retratadas em cena. “Eu provavelmente não saberia onde conseguir uma arma, e provavelmente não confiaria em mim mesma com uma. Acho que essa é a razão pela qual as mulheres não recorrem à violência, e muito raramente termina bem quando o fazem. Mas o que eu poderia fazer?”. Assim, ela se decidiu pelo tom muito mais psicológico e existencial. O que acontece com Cassie é exatamente o que acontece a uma mulher que ousa reagir ou sequer imaginar uma vingança contra seu agressor em um mundo onde uma em cada três mulheres já foi vítima de violência sexual ou física, segundo dados da ONU. Assista ao trailer:

Bela Vingança (Promising Young Woman) – EUA/Reino Unido, 113 min, 2020. Dir.: Emerald Fennell – Estreia em 13/5.

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