Durante a Primeira Guerra Mundial, dois soldados ingleses têm apenas algumas horas para percorrer uma grande distância e impedir que um contingente inteiro de seus colegas sofra uma emboscada do exército alemão. Só que parte do trajeto passa por território inimigo, ameaçando seriamente o cumprimento da tarefa. Eis a premissa de um dos candidatos mais fortes desta temporada de premiações.
Com a vitória no Globo de Ouro, no início do mês e, especialmente, o prêmio do sindicato dos produtores norte-americanos (PGA), conquistado dias atrás, ‘1917’ passou a ter status de favorito à principal estatueta do Oscar (que acontece em 9 de fevereiro), colocando-se em ligeira vantagem em relação a ‘Parasita’ e ‘Era Uma Vez em… Hollywood’, principais adversários no momento. O diretor, Sam Mendes, que já ganhou o prêmio da Academia por ‘Beleza Americana’ (1999), triunfou no Globo de Ouro e no Critics Choice, e também vem dominando a bolsa de apostas.
Logo, a pergunta é: ‘1917’ merece ser o grande vencedor do Oscar? De suas dez indicações, a vitória por melhor fotografia já é dada como certa há algum tempo, uma vez que Roger Deakins, lendário diretor de fotografia, não só alcança resultados visuais costumeiramente deslumbrantes – vide ‘Blade Runner 2049’ (2017) – como tem papel fundamental na estrutura narrativa do filme, concebido para se desenrolar como um único plano-sequência. Ou seja, sem cortes aparentes, tal qual ‘Birdman’ (de Alejandro Iñárritu), suspeito vencedor do Oscar em 2015.
Tem grandes chances, ainda, em mixagem e edição de som. Este último se refere à captação e escolha dos sons correspondentes às ações do filme, enquanto a mixagem trata de sincronizá-los e equilibrá-los junto aos diálogos e músicas, construindo a paisagem sonora. Filmes de guerra tradicionalmente triunfam em pelo menos uma dessas categorias, e ‘1917’ parece ser competente o suficiente para isso. A não ser por um belo tropeço, perto da metade, quando, num espaço aberto, simplesmente não se ouve a chegada de caminhões e suas tropas, logo ali, a 20 metros dos protagonistas, que só os percebem quando são diretamente interpelados. É o primeiro de pelo menos quatro deslizes, embora o único relacionado ao som.
Logo em seguida, o caminhão é obrigado a sair da estrada bloqueada por um tronco. Atola. Perde-se tempo precioso até que todos desçam do veículo e consigam empurrá-lo para fora da lama. A cena deveria ressaltar a urgência da missão, mas perde propósito quando seu desfecho revela a margem oposta da estrada totalmente intacta. Por que, então, o comboio não se dividiu entre os dois lados para evitar o atolamento? Ao menos este último motorista, observando a terra já revolvida pela passagem dos demais, poderia ter desviado pelo outro lado.
Minutos depois, na construção visual mais memorável do filme, durante a cena noturna, um soldado inimigo persegue um dos protagonistas. Dispara dois tiros quando estão bastante próximos. De maneira improvável, não atingem o alvo. O segundo deles supostamente dificultado por uma providencial escorregada do oponente. Aproveitando-se da queda, o inglês se safa entrando no porão de uma casa, enquanto o adversário passa reto pelo local. O problema é que dificilmente o combatente alemão não teria visto o herói adentrando o edifício, pois estavam a poucos metros de distância, sem qualquer objeto entre eles.
São falhas breves, mas quando surgem em uma produção que prima por um realismo quase documental, colocam em grande risco a chamada “suspensão da descrença”, aquele pacto automático que fazemos ao ler, ouvir ou assistir uma obra, no qual, durante aquele tempo específico de fruição, aceitamos como plausíveis os fatos que nos são apresentados. Torna-se um ruído que prejudica a plena imersão na trama.
Mesmo compensado por momentos grandiosos, como o avião à la ‘Intriga Internacional’ (1959), vindo ao encontro dos soldados; ou a já citada cena noturna; e ainda a corrida desesperada cruzando toda a linha de frente, enquanto a tropa avança para o ataque, ‘1917’ (assim como ‘Birdman’) parece se preocupar mais em destacar a complexidade técnica de sua execução (e realmente o é), do que em construir uma conexão mais profunda entre nós e os personagens, algo em que o longa de Iñárritu é melhor sucedido.
Ironicamente, um filme que gira em torno da entrega de uma importante mensagem, no fim das contas, pouco nos diz – outro ponto em que consegue ser superado por ‘Birdman‘. Conclusão: não merece, mas tem tudo para levar o Oscar (que deveria ser de ‘Parasita’).
1917 (1917) – Reino Unido/EUA, 119 min, 2019. Dir.: Sam Mendes – Estreou em 23/1. Assista ao trailer:
O Portal Pepper dedica a cobertura do Oscar 2020 à memória de Rubens Ewald Filho (1945-2019), pioneiro da crítica cinematográfica no Brasil, e referência absoluta sobre história e bastidores da premiação mais tradicional da 7ª Arte.