“Dois Garotos Que Se Afastaram Demais do Sol”, tem como fio condutor a disputa pelo título mundial de boxe de 1962, entre os afros caribenhos Benny Kid Paret – encenado pelo ator Rodrigo de Odé e Emile Griffith, primeiro campeão mundial de boxe a assumir sua bissexualidade – interpretado pelo ator Sidney Santiago Kuanza.
O LUTO NA LUTA – O ALVO PRINCIPAL TEM COR, GÊNERO E ETNIA
No dia anterior à luta, durante a pesagem, o cubano Kid Paret havia proferido várias ofensas em relação à orientação sexual de Griffith, que subiu no ringue transtornado e desferiu uma sequência de golpes em Paret, levando-o ao coma. Paret veio a falecer 10 dias depois e o fato trágico assombrou o campeão até o fim dos seus dias. A obra é baseada na peça “12º Round” do dramaturgo Sérgio Roveri, e faz uma série de pré estreias em outubro e novembro, com exibições online e gratuitas.
Desde 2018, Roveri já aguardava pela montagem de seu texto inédito, quando a Cia Os Crespos propôs encená-lo. A dramaturgia dele presta uma homenagem ao tricampeão de boxe Emile Griffith, contando sua trajetória desde a fatídica luta com Paret até o final de seus dias, quando, depois de décadas atormentado pelo fantasma de Kid, Emile é reconhecido como um dos ícones da luta gay, tendo enfrentado diversas situações homofóbicas dentro e fora do esporte.
A diretora geral do trabalho, Lucelia Sergio, conta: “O texto do Sérgio nos propunha um jogo cênico interessante, a partir das regras de tempo de uma luta de boxe e, além de trazer à tona essa história, sua abordagem na construção das personagens é muito sensível.”
A ação do filme se passa no recorte temporal entre a preparação de Griffith e Paret para a luta, até os dias seguintes à morte de Kid Paret, quando Emile começa a ser atormentado pelo fantasma de Kid. O curta, que não tem caráter biográfico, vai além da homenagem a Griffith. Na adaptação para o audiovisual, o roteiro buscou ler a luta hiperdramática preocupada em ressaltar questões enraizadas em uma sociedade racista, machista e homofóbica. “Um filme para falar sobre os fantasmas que surgem nas cabeças torturadas pelas lutas diárias de autodefesa, numa sociedade cheia de mecanismos escravocratas, cujo controle dos corpos, fiscaliza nossos afetos e molda nossos afetamentos”, completou Lucelia Sergio.
“Meu corpo todo tá maltratado. É pelos golpes do boxe na cabeça, sim, mas é muito mais pelos golpes do sol, o sol da lavoura da cana. Eu já havia trocado o facão pelo ringue e mesmo assim, ainda acordava assustado com a lembrança daquele facão na minha mão”. O trecho do curta “Dois Garotos Que Se Afastaram Demais do Sol”, dito pela personagem de Kid Paret, nos provoca a refletir sobre as dores de homens negros em luta por dignidade, mas que são completamente afetados pelos códigos de uma sociedade que os enraivece, embrutece e amedronta. Longe da glória dos holofotes e da vida pública, Kid Paret era um garoto analfabeto que fugira da escravidão da cana na Cuba pré-revolucionária e, ambicionava comprar um açougue em Miami, onde poderia viver o sonho americano com sua mulher grávida e seu filho pequeno.
O filme surge no contexto da pandemia, como saída para a montagem do espetáculo teatral, cujos ensaios foram suspensos em março de 2020. No curta, a companhia tenta conciliar recursos teatrais com enquadramentos cinematográficos. O ringue se torna o palco e nele as relações entre as personagens acontecem. Dividido em rounds e intervalos, como propõe o texto original, a adaptação é ambientada na sociedade estadunidense, que se via em meio à luta por direitos civis de pessoas negras e gays, e ao mesmo tempo espetacularizava as lutas de boxe, nas quais os lutadores eram em sua maioria negros, e/ou latinos.
A direção do filme – compartilhada entre Lucelia Sergio e Cibele Appes, da Fuzuê Filmes – buscou, no entrecruzamento das linguagens, manter características teatrais na iluminação, parte dos cenários, e nos monólogos dramáticos com digressões, além de algumas soluções cênicas. Por outro lado, houve o esforço de reconstituir as cenas reais da pesagem, quando Kid ofendeu Emile e a fatídica luta, entendendo os recursos cinematográficos de enquadramentos e sobreposições de imagens.
Sobre os desafios de transpor uma pesquisa teatral para o cinema, Lucelia fala sobre os desafios. “Como levar para a tela um monólogo de três minutos, baseado na relação entre atuantes e plateia? Era preciso um esforço para unir a potência discursiva do teatro narrativo com a subjetividade que o cinema propõe. Como as personagens são perturbadas por lembranças, os recursos cinematográficos de montagem para a memória visual foram fortes aliados e ajudaram a chegar à velocidade pretendida, dialogando com outros filmes de boxe, que serviram de referência para a obra”, contou.
O boxe coreográfico, apresentado por Carolina Nóbrega, foi integrado à montagem e além de reconstituir as sequências de golpes da luta de 62, também tornou-se discurso estético no filme. Dialogando com as regras da luta, os golpes e defesas serviram de recurso poético para a performance dos atores em cena. Escolha que contribuiu para a construção das ações, propondo um espelho com a vida cotidiana de pessoas negras na América, constantemente em luta.
Em março de 2020, o espetáculo já estava quase pronto quando o mundo foi assolado pela pandemia da Covid-19. Após várias adaptações necessárias para cumprir os protocolos sanitários, a Cia ainda teve que lidar com a perda de João Acaiabe, mais uma das vítimas da doença. João, que acabara de completar 50 anos de carreira, faria o personagem de Emile como narrador da história. “Com a morte do João o roteiro mudou completamente”, revela Lucelia Sergio, “Já intuíamos sobre o que falar, mas com a partida dele tivemos que manobrar a história, sem tempo de viver o nosso luto”.
“Dois Garotos Que Se Afastaram Demais do Sol” é fruto do projeto de “Mãos Dadas: Afetos Políticos, Contornos Poéticos” contemplado pela 35ª Edição do Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a cidade de São Paulo. O projeto proporcionou o aprofundamento da pesquisa de linguagem, que investigou sobre masculinidades negras e as possíveis intersecções com as lutas de auto defesa. Neste percurso Os Crespos foram provocados a pensar a humanidade negra a partir da filosofia Bacongo, apresentada pela Professora Aza Njeri, Pós-doutora em Filosofia Africana UFRJ, “todo ser humano é um sol vivo – as populações negras sofrem um constante apagamento do seu sol, através de fenômenos de poder de desumanização dos nossos corpos – uma família, independente da sua constituição é uma constelação solar, subindo a montanha da vida”. Essa ideia iluminou uma das frases do texto de Roveri, que virou o título do filme-espetáculo. A frase que dá nome a obra resume a ideia de que as pessoas negras têm sua dignidade como ser humano desafiada, até que elas fracassem, até que seu sol seja apagado.
O curta-metragem entra em circuito de exibições de pré estreias por alguns equipamentos públicos durante os meses de outubro e novembro. Confira a programação abaixo:
Outubro
15, 16 e 17 – sexta e sábado, 21h, domingo, 19h – Youtube do Teatro Arthur Azevedo (Debate com direção e elenco no domingo, 17 de outubro, após exibição do curta)
16 – sábado, 18h45 – pela Mostra “Quando o Palco Se Fez Cinema” no Youtube do CCSP
Novembro
5, 6 e 7 – sexta e sábado, 21h, domingo, 19h – Youtube do Teatro Alfredo Mesquita
12, 13 e 14 – sexta e sábado, 21h, domingo, 19h – Youtube do Teatro Cacilda Becker (Debate com direção e elenco no domingo, 14 de novembro, após exibição do curta) – Assista abaixo: