“ANNA” DISCUTE OPRESSÕES EXERCIDAS PELO PATRIARCADO A PARTIR DA TRAGÉDIA DA PIEDADE, CRIME PASSIONAL QUE RESULTOU NA MORTE DE EUCLIDES DA CUNHA

TRATA-SE DA PRIMEIRA PEÇA ESCRITA POR MÁRIO VIANA, NO FIM DOS ANOS 80, E AINDA É INÉDITA
}

06.05.2021

Heloisa Bortz / André Grynwask

Com texto de Mário Viana e direção de Gonzaga Pedrosa, estréia a peça “Anna”. O espetáculo, que será exibido pelo canal no Youtube, é livremente inspirado pela Tragédia da Piedade, crime passional ocorrido em 1909. No elenco, estão Gustavo Moura (Dilermando), Valdir Rivaben (Dinorah), Jonathan Well (Sólon), Selma Luchesi (Túlia) e Vera Lúcia Ribeiro, intérprete de Anna, idealizadora e produtora do espetáculo.

A Tragédia da Piedade, que ficou conhecida com esse nome por ter ocorrido no bairro da Piedade, no Rio de Janeiro, se refere à morte do escritor Euclides da Cunha, autor de Os Sertões”, que foi até a casa do amante de sua esposa, Dilermando de Assis, para tentar matá-lo, e acabou sendo morto por ele por legítima defesa. Na peça escrita por Mário Viana, o ponto de vista é o de Anna, a amante de Dilermando e sua futura esposa. Também integram a montagem outros personagens, como Dinorah, irmão de Dilermando que foi atingido por uma bala durante o tiroteio e ficou paraplégico após a retirada da bala de seu corpo; Sólon, filho de Euclides e Anna; e Túlia, mãe de Anna.

As personagens de Mário Viana vivem em dois tempos e em dois espaços numa mesma casa, recurso cênico que, por ser operado por meio das telas, estabelece uma proximidade entre o período da Tragédia da Piedade e os tempos atuais, marcados pelo isolamento social. A narrativa entrecruzada também revela desejos, angústias e culpas que atormentam Anna, cujas sombras dos fantasmas do passado ainda habitam seus pensamentos.

“Usamos a plataforma Zoom para os ensaios, para a definição dos enquadramentos. Para gravar, câmeras de celulares ou mini câmeras com monitoramento via plataforma Zoom. Por vezes, me imaginei ‘dirigindo no escuro’. As possibilidades de movimentos de cena são as possibilidades do confinamento das casas das atrizes e dos atores transbordadas no confinamento emocional e corporal das personagens, que culminam enquadrados em telas”, conta o diretor Gonzaga Pedrosa.

A história de Anna retrata diversos tabus sociais, como divórcio, traição, diferença expressiva de idades – Anna tinha 16 anos a mais do que Dilermando, e os limites de um amor incondicional, já que ela continuou com Dilermando mesmo após os danos causados pela tragédia. “Na peça, as lembranças de Anna aparecem como se a vida dela estivesse suspensa. O público vê, em forma de flashbacks, as pessoas de seu passado e presente. Neste sentido, o cinema ajudou muito o teatro, pois é possível brincar mais com o vai e vem dessas lembranças”, conta o dramaturgo Mário Viana. “Os personagens se transformam na frente do espectador e eles também se espantam, são informados de algo. É um jogo interessante – um jogo que deve muito ao cinema”, reforça.

Por terem sido perseguidos até o fim de suas vidas, Anna e Dilermando também trazem para a peça a complexidade do assunto sobre os tribunais populares, um tema recorrente hoje, reforçados pelas mídias sociais. Outros temas infelizmente atuais que a peça traz são o da dominação do patriarcado, que gera o impulso no homem em “defender sua honra” e a visão da mulher subserviente ao marido, casa e filhos.

“Anna foi vítima de uma sociedade formada por famílias conservadoras criadas nos regimentos dogmáticos das religiões institucionalizadas pelo poder masculino, o patriarcado consumado a partir da esfera entre religião e política. A política é regida pelo conceito militar, onde o homem é desumanizado e treinado para a guerra, é transformado em um competidor e habilitado para a indústria e o capitalismo. E na religião a mulher é excluída da sua sexualidade, transformando-a em santa virgem Maria, dona de casa e mãe procriadora. A ela era proibido até mesmo gemer durante o ato sexual, e ao homem – ainda hoje – é atribuído o heroísmo de fazer da mulher sua presa sexual subserviente”, diz Vera Lúcia Ribeiro.

A atriz reforça que, ainda que não seja capaz de sentir a dor de Anna, traz em sua interpretação a dor de mulheres que são vítimas da opressão violenta, da humilhação exercida pelo machismo de antes e de hoje, presente em todos os homens, em maior ou menor grau.

Mário Viana destaca que um dos pontos mais interessantes da personagem Anna é o modo com que encara os seus conflitos. “Existem contradições fascinantes tanto nas pessoas quanto nos personagens, e a ideia nessa montagem é de que elas apareçam sem que façamos juízo de valor”, diz o dramaturgo. Vera Lúcia complementa que a vida de Anna traz uma monstruosidade de conflitos, como a impossibilidade de viver plenamente sua vida amorosa e suas liberdades individuais.

É válido lembrar que a Tragédia da Piedade não foi a única fatalidade vivida por Anna. Quando Dilermando foi preso pela morte de Euclides da Cunha, seus filhos foram conduzidos pelo juiz para serem cuidados por tutores da família do marido morto. Ela casa-se então com Dilermando, considerado assassino do seu marido, e ele é novamente atacado, desta vez pelo próprio filho de Anna (enteado do marido), que acaba sendo morto. Anna enfrenta sua maior dor, mas entende que o filho foi convencido a cometer o crime.

O diretor conta que o fato de cada artista interpretar a peça da sua própria casa reforça a proposta do espetáculo de trazer esses diferentes pontos de vista imaginados por Anna. “Usamos a ferramenta mais poderosa do teatro: a imaginação. Apresentamos personagens, sugerimos ambientes, objetos, linhas arquitetônicas e mobiliários que estão em lugares diferentes, mas que brincam com a mente, criando a possibilidade de ser um lugar único-unificado”.

Gonzaga conta ainda que a montagem das cenas organizadas por Andre Grynwask e Pri Argoud traz a ilusão de uma única locação a partir dos enquadramentos sugeridos e da proposta estética desenvolvida na pós-produção. Heloisa Bortz foi orientando cada ator e fazendo o desenho de luz, uma luz unificadora de cinco espaços, e a fotografia still. Telumi Hellen, a partir da pergunta ‘Que roupas você tem em seu guarda-roupa?’ foi ressignificando as vestes e as transformando em figurinos. Rafael Thomazini fez a edição de áudio e compôs uma trilha sonora especialmente para esse experimento cênico.

O espetáculo é a primeira peça escrita por Mário Viana, no fim dos anos 1980, e ainda é inédita. “Apesar de ter recebido retornos muito positivos com a leitura do texto naquela época, a escrita da peça coincidiu com a estreia da série televisiva Desejo, de Glória Perez, que retratava exatamente a Tragédia da Piedade”, lembra-se o dramaturgo, que decidiu guardar o material para uma montagem posterior que pudesse acontecer dissociada do produto televisivo.

“GRAVIDADE ZERO” DE MÁRIO BORTOLOTTO FALA SOBRE REGRAS E RESTRIÇÕES IMPOSTAS PELA SOCIEDADE

Na sequência, Mário consolidou-se como comediógrafo, autor de peças que variam do escracho escatológico ao conflito familiar. Trinta anos depois da escrita de Anna, o texto foi retomado para uma leitura online, o que trouxe outro encantamento à obra e a vontade de vê-la montada, agora em formato virtual e, futuramente, nos palcos.

“Me interessa na peça o aspecto do poder feminino e seu direito de exercer sua liberdade como lhe convier. Anna está à frente de seu tempo como mulher e não se curva às regras opressoras da sociedade. Me interessa falar do feminino que é cerceado e oprimido pelo machismo. Me interessa dar voz a mulher, ao seu direito de respeito como mulher, mãe e amante. Me interessa falar do porque continuamos a ver tanta violência e preconceito contra a mulher – falar do sistema político religioso sustentado por uma sociedade hipócrita e mentirosa”, conta Vera, que após ter conhecido o texto de Mário, embrenhou-se em uma pesquisa sobre Anna que passou por uma série de matérias jornalísticas e diversos livros, sendo um deles Anna de Assis – História de Um Trágico Amor, escrito pelo jornalista Jeferson de Andrade e pela filha de Anna, Judith Ribeiro de Assis.

SERVIÇO

Espetáculo “Anna”

Onde: No canal do Youtube Veraluz Performance

Quando: 8 a 16 de maio

Horário: sábado e domingo às 20h

Quanto: gratuito

Duração: 100 minutos

Classificação etária: 14 anos

Sua notícia no Pepper?

Entre em Contato

Siga o Pepper

Sobre o Portal Pepper

O Pepper é um portal dedicado exclusivamente ao entretenimento, trazendo ao internauta o que há de mais importante no segmento.

Diferente de outros sites do estilo, no Pepper você encontrará notícias sobre música, cinema, teatro, dança, lançamentos e várias reportagens especiais. Por isso, o Pepper é o portal de entretenimento mais diversificado do Brasil com colunistas gabaritados em cada editoria.