“RESPEITEM MEUS CABELOS” – O RACISMO ESTÁ AÍ, SÓ NÃO APRENDE QUEM NÃO QUER!

O RACISMO TEM NOS DEVORADO. DEIXADO EM NÓS MARCAS TÃO ARRASANTES QUE NEM MIL EMBARCAÇÕES DÃO CONTA DE LEVAR PRA LONGE
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07.04.2021

Juh Almeida / Helen Salomão

Ultimamente tenho recebido tanta carga de informações sem nem ter buscado, que até me faz acreditar que elas estão tomando vida e querem se anunciar, quase que não sou eu que falo, mas elas próprias, as nossas histórias.

Quem aqui nunca sofreu bullying na escola, na rua, na igreja ou em qualquer outro local onde nos agrupávamos? Pois é, este mal está marcando nossa jornada há tempos. Nós negros sofremos não só com o bullying, mas também com o racismo. As gozações que nos fazem, na maioria das vezes estão ligadas à cor de nossa pele e aos nossos traços físicos que mostram de onde descendemos. Isso chega a nossas aldeias, mas não pertence a nós.

MILITÂNCIA – DESVALIDAR ESTAS LUTAS POR CAUSA DO CARÁTER DOS LUTADORES É NÃO OLHAR NO ESPELHO

O racismo tem nos devorado. Deixado em nós marcas tão arrasantes que nem mil embarcações dão conta de levar pra longe. É algo que nos traga, que dói e corrói, cria fissuras. Nos coloca em lugares que quase não há restauração. Muitos conseguem levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima, mas não no mesmo tempo de outros, nem sempre no mesmo passo de alguns, ou, nem.

Ouvimos uma “piada” sobre a textura de nossos crespos, outra “piada” sobre o formato de nossas narinas e até “piada” disfarçada de elogio sobre o tamanho das genitálias. Para os piadistas, isso é só uma “brincadeira”, mas para os que não riem desse racismo, fica a dor, a autorrejeição de quem somos ao sermos comparados com bichos, com utensílios domésticos, ou homem das cavernas.

MANOELA PAULINA, DIRETORA DO DOCUMENTARIO “NEGRAS MULHERES” – FOTO: VERÔNICA NASCIMENTO

O documentário “Negras Mulheres” dirigido por Manoela Paulina, que fala sobre mulheres negras de Ipiaú, no Sul da Bahia, tem me tocado de uma forma tão afiada quanto especial. São memórias que nascem com nossos cabelos e viajam nas estruturas de nossas vidas, onde as sequelas de abusos geraram insegurança, medos, baixa autoestima, desejos de embranquecimento, vontade de não existir.

Eu não podia sair de casa sem fazer prancha nos meus cabelos, pois as pessoas não podiam me ver negra”, nos diz Nágila Barros, graduanda em letras, é uma das dez entrevistadas do filme.

Quando eu entrei na sala de aula, no primeiro dia de aula, os meninos começaram a me chamar de nega do leite, cabelo de pixaim… a minha mãe foi à escola conversar com a diretora…  e ela simplesmente perguntou, qual a cor de sua filha? A minha mãe respondeu: Negra. Então porque você está achando ruim? Respondeu a diretora da escola…” nos conta Aitana Mendes,graduanda em enfermagem que abre sua vida com depoimentos tão íntimos.

“Em junho, nas festas juninas, todas as meninas conseguiam par para dançar quadrilha, mas ninguém queria dançar comigo, porque eu era negra, cabelo duro e pobre…” fala a pedagoga Celiana Gabriel, com 52 anos.

A relação com o cabelo é algo muito valioso dentro da cultura negra. Ele é uma marca de nossa história. No passado, as várias formas de penteados indicavam o grupo ao qual pertenciam. Durante a escravidão negra no Brasil, os entrelaçamentos dos fios na cabeça guiavam escravizados foragidos aos quilombos. Os dreadlocks são sinais de resistência política. E por muito tempo tudo isso foi podado por um grupo social que tentava padronizar a estética dentro do que era eurocentricamente aceito.

LUZIA, BENTA, MARIA, LUÍZA, AURINDA, ANTONIETA E ESPERANÇA – A MULHER NEGRA TEM HISTÓRIA

Quantos garotos cortavam seus cachos deixando o cabelo bem baixo ou mesmo raspados para que não fossem motivo de chacota entre os amigos, e muitas vezes estes eram outros negros, que reproduziam o racismo que ouviam na tv, em casa dos patrões de seus pais e até na própria escola, dito por professores. As garotas eram forçadas pelas suas mães a passarem ferro quente nos crespos que chegavam até a queimar o couro cabeludo ou usar produtos para alisamento que cheiravam muito mal, dando até falta de ar. E assim a negritude era abafada.

As nossas peculiaridades físicas nos fazem únicos, com nossos narizes grandes, arredondados, a pluralidade de tons que colorem nossa tez, a beleza de nossos lábios que ajudam a harmonizar o rosto e sela nossa herança étnica assim como a variedade de etnias que se orgulham de seus traços. A nós cabem os elogios de que somos deuses e deusas de ébano, fortes e nobres como as árvores de ébano, e quando espalhamos isso aos outros e as outras, podemos alcançar novos patamares de autoestima. 

Ouvir depoimentos tão potentes me levou à infância, quando era apelidado de Buiú por conta de meu nariz grande e como isso me doía, planejava trabalhar, juntar dinheiro e fazer cirurgia plástica para que aquele fantasma se afastasse. Hoje estou resolvido com isso, mas não me sinto confortável quando alguém, por algum motivo, toca em meu nariz.

Precisamos exaltar a beleza negra desde cedo. Exaltar os traços que se formam em quem tem pele azeviche. Tratar as crianças para que cresçam em um mundo onde não são lesadas por comentários maldosos sobre suas personalidades.

Eu falo a partir de memórias porque é necessário entendermos nossos processos para chegarmos a ser mulheres potentes, protagonistas de suas próprias histórias e assim levar outras a refletirem sobre isso…”, nos brinda Manoela Paulina, que me faz lembrar as palavras de Ângela Davis: “Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela.”

O racismo está aí, só não aprende quem não quer!

Ainda dói, porque o dissabor não é apenas individual, mas também coletivo. Porém a nossa aliança não se faz com sobrenomes, propriedades ou títulos, nossa aliança está em outro lugar. Nos relacionamos de outra forma, com quem está ao nosso lado e em círculo, assim como o mundo se move, nos movemos.

Meu sangue é seu sangue.

Minha pele é sua pele.

Minha raiz é sua raiz.

Minha mainha é sua mainha.

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