Mulher, teu corpo é água. Fruição!
Estar diante de si mesma é desfrutar da experiência de reconhecer seus saberes e ciclos numa sensação de imensidão que se assemelha à de boiar no mar.
O mar é mistério, respirar e escutar seu movimento é embarcar na sua força. O corpo humano é composto por uma proporção de água igual a do nosso planeta. Esse aguar é encontro que nutre as células, dá vicosidade ao mover e faz o sangue percorrer nossa extensão. Reconhecer a natureza do que somos feitas nos aproxima da vida e de seus cuidados. Cura!
“A água mede o equilíbrio, dá forma ao mesmo tempo em que é um elemento disforme, sugerindo o Caos que precede a formação do universo”, escreve Loreley Garcia em seu artigo “Água em três movimentos: sobre mitos, imaginário e o papel da mulher no manejo das águas” na Revista Gaia Scientia.
Muita agitação moveu nossas águas até aqui, mas as marés de 2021 nos trazem esperanças, o mês de fevereiro vem se aproximando e com ele o dia de uma Orixá feminina, a rainha do mar. Dia 2 de fevereiro, religiosamente, é o dia de Iemanjá!
O coração de quem vive essa fé e tradição já está em preparação em muitos lugares do Brasil. No Rio Vermelho, em Salvador da Bahia, da véspera até o final desse dia acontece um movimento de festa e entrega. Neste ano, a maré nos mostra que precisa ser diferente, devido às restrições da pandemia do novo coronavírus, a tradicional festa vai acontecer de outras formas, com adaptações e cuidados.
A Oficina-Ação Lavagem, que vem sendo realizada desde 2017, está em sua 6ª edição, idealizada pelas artistas e produtoras Raiça Bomfim e Olga Lamas, o projeto é um desdobramento da pesquisa do espetáculo Loucas do Riacho. Um processo imersivo de descobertas, contemplação e profundidade desembocando em uma performance-oferenda na alvorada da festa.
A itan de Iemanjá nos revela que ela é dona de todas as cabeças por ter curado o ori de Oxalá. Os caminhos da Oficina-Ação, nos anos anteriores, passaram por uma preparação bonita e minuciosa das cabeças: amarrar o barbante formando uma rede, escolher cada planta e entrelaça-las formando a cabeça-flor, a oferenda. Depois, diante da imensidão das águas, numa dança-vida as mulheres oferecem suas cabeças ao coração do mar.
“Os desafios para esta edição são, em sua maioria, aqueles que vêm sendo encarados desde o início da pandemia: o de encontrar o fio da coletividade através da virtualidade; o de reconhecer as potências dos encontros propiciados no ambiente online sem negligenciar os encontros sutis (consigo mesma, com a própria história, com a casa e com quem coabita esse espaço) que só podem ser vividos no tempo off-line; o de reelaborar sentidos que ativem a potência de estar viva; o de desembaraçar o novelo que une o cuidado ao medo, sabendo diferenciar quais são os atos e pensamentos que precisam ser alimentados numa atitude constante de cuidado consigo e com os outros, e quais são aqueles atos e pensamentos que precisam ser dissolvidos, uma vez que funcionam como dispositivos de submissão ao medo, de controle, de asfixia e de adoecimento”, diz Raiça.
A conexão entre as mulheres, proporcionada pela condução de Raiça e Olga é como a presença fresca e o agitar das ondas do mar: mexe com águas profundas e bagunça a areia, que assenta em novos lugares deixando ir o que é pra maré levar. A entrega é certa, mulheres são caminhos, e quando caminham de mãos dadas são potências ancestrais, representação mulheril na sua potência infinita.
“A proposta de LAVAGEM era e ainda é de evocação de memórias, segredos, dores, gozos, silêncios e gritos de mulheres em comunhão na intenção de “lavar”, fissurar e abrir brechas nos habituais modos de existir (pré-fixados pelo patriarcado), ativando uma escuta sensível aos vestígios negligenciados da história ‘oficial’ e investigando as marcas de violência que compõem tanto as mulheres quanto o espaço/cidade que elas habitam. Todo um percurso artístico de convocação dessas instâncias é realizado durante a oficina, que culmina numa performance-oferenda de entrega de cabeças de flores à Iemanjá”, acrescenta Raiça.
Nada apaga a experiência da força das mulheres diante do mar. Lindete Souza, jornalista, mãe e multiartista participa da lavagem há 3 anos: “um dia que mistura profano e sagrado, 2 de fevereiro, Odoyá!!! As sensações são muitas e todas de profundo sentimento, leveza, entrega, arte, amor, água… As águas de IYÁ ORÍ, Iemanjá, dona das nossas cabeças. Não é difícil, nesse dois de fevereiro, estar no profano passando com o sagrado no nosso corpo de grande riqueza por ser útero. Somos nós mulheres cada uma que são todas, imersas nas suas águas, que parecem diferentes, mas não são, são únicas em ondas de muitas histórias, que se entrecruzam… Eu, ela e a outra… Outras, alí juntas com um único pensamento: Iemanjá!”.
As micro-performances rituais podem ser acompanhadas e acolhidas pelas tags #oficinaaçãolavagem #oficinaaçãolavagem2021 #microperformancesparaiemanjá e também na página @gameleiraintegra. E que as imagens desses rituais distantes, mas conectados, sejam convites, pra você, mulher, se florir e se entregar no balanço de suas águas mais profundas conduzidas pela dança de Odoyá. Há mar em nós!