Tom leve de ‘Green Book: O Guia’ não diminui sua importância

Indicado a 5 Oscar, longa já venceu Globo de Ouro no início do ano
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26.01.2019

Divulgação / Reprodução

Há quase 30 anos víamos na telona o motorista afrodescendente Hoke Colburn (Morgan Freeman) levando a judia Daisy Werthan (Jessica Tandy) pela cidade de Atlanta, sudeste norte-americano, em meados do século 20. Resistente no início, já que Hoke fora contratado pelo filho sem consulta prévia, aos poucos Daisy vai confiando no chofer.

A relação se torna amizade. Ela o ensina a ler. Em contrapartida, passa a compreender melhor a história e realidade de vida do motorista. O filme em questão, adaptação da peça de Alfred Uhry, e dirigido por Bruce Beresford, é ‘Conduzindo Miss Daisy’ (1989).

Três décadas depois, ‘Green Book: O Guia’, vencedor do Globo de Ouro há algumas semanas, e indicado a cinco Oscar, inverte os papéis. Baseado em uma história real, ambientada no início dos anos 60, aqui é o músico negro Don Shirley (Mahershala Ali) quem contrata o ítalo-americano Tony Lip (Viggo Mortensen) para ser seu motorista e segurança durante uma turnê pelo preconceituoso sul dos EUA. É Shirley, erudito, de carreira consolidada e financeiramente estabilizado, quem ensinará bons modos ao xucro e truculento contratado. Tony, por sua vez, um cara que no fundo só quer o melhor para a esposa e os filhos, com seu jeito simples e direto levará Shirley a uma percepção diferente da vida.

Assim como em ‘Miss Daisy’, o tom varia do drama leve a comédia contida. Um grande exercício de autocontrole para o diretor Peter Farrelly, cuja carreira foi construída, basicamente, sobre altas comédias joviais – ‘Débi & Lóide’ (1994), ‘Quem Vai Ficar com Mary’ (1998), ‘O Amor é Cego’ (2001), para citar algumas. Algo bem distante, portanto, do soco no estômago que Spike Lee nos dá com ‘Infiltrado na Klan’, outro filme sobre intolerância racial, também indicado ao Oscar deste ano. Perto deste, ‘Green Book’ é sessão da tarde.

Os conflitos existem. Cenas que nos mostram injustiças e humilhações sofridas pela população negra estão lá, mas sempre duram menos do que as situações mais leves e bem-humoradas que as precedem. É a essência do diretor, não tem jeito. O foco é a amizade desenvolvida entre Tony e Don Shirley. As questões raciais são apenas parte e pano de fundo dessa relação, que de quando em quando emergem ao primeiro plano.

A experiência de Farrelly com comédias, entretanto, traz benefícios. O ritmo é ágil. A sequência inicial, em que Tony Lip nos é apresentado no luxuoso bar em que trabalha, é vigorosa, ganhando completamente nossa atenção. E, admitamos uma vez aceita a proposta menos dramática do filme, há diálogos, de fato, pertinentes e engraçados, que funcionam muito em função da qualidade dos protagonistas, soberanos em cena.

Mahershala Ali, vencedor do Oscar de ator coadjuvante por ‘Moonlight’ (2016) e bem cotado para repetir o feito por ‘Green Book’, segue em franca ascensão na carreira. Embora a aparência não revele, Viggo Mortensen já é um veterano (60 anos). Conhecido pela trilogia ‘O Senhor dos Anéis’ (2001/2002/2003), o papel de Tony Lip (que anos depois acabou por também se tornar ator) lhe rendeu sua terceira indicação ao Oscar. Imaginemos, por exemplo, uma dupla como Colin Farrell e Cuba Gooding Jr. no lugar de Ali e Mortensen. O resultado seria desastroso. O filme permaneceria importante, mas pouco notável.

green book

No mundo do cinema ocidental de três décadas atrás, que assistia, esperançoso, ao enfraquecimento do Apartheid na África do Sul, era suficientemente positivo produzir algo como ‘Conduzindo Miss Daisy’. Na peculiar sincronia com o contexto político-social do momento, o longa sagrou-se o grande vencedor do Oscar de 1990, pouco mais de um mês após a libertação de Nelson Mandela.

Embora a frase seja antiga, o que a arte faz não é bem imitar a vida. Na verdade, ela a projeta, sobretudo de maneira otimista. Daí a importância de um filme bem produzido como ‘Green Book: O Guia’ existir. A moral é a mesma de ‘Miss Daisy’: a igualdade e cooperação entre diferentes raças como fator preponderante para a evolução e bem-estar humano. Mas uma simples troca de papéis muda completamente a dimensão do gesto. Levou 30 anos para o cinema permitir que um negro bem-sucedido contratasse um motorista branco, do subúrbio da cidade, para o conduzir.

Isso nos mostra que o cinema ocidental permanece conservador e está atrasado em relação à realidade? Ou se trata de um alerta de que as coisas não caminharam tão bem assim de lá para cá? É esse o ponto e grande mérito de ‘Green Book’, que, aliás, remete a um livreto daquela época que listava hotéis e restaurantes do sul dos EUA onde a circulação de negros era permitida.

Green Book: O Guia (Green Book) – EUA, 130 min, 2018- Dir.: Peter Farrelly – Estreou em 24/01. Assista ao trailer:

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