“VERDADE” DESVENDA RELAÇÃO DE MILITARES COM O ATUAL GOVERNO BRASILEIRO

COM TEXTO E DIREÇÃO DE ALEXANDRE DAL FARRA, A PEÇA RECRIA FICCIONALMENTE FATOS REAIS DA POLITICA
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09.07.2022

Otávio Dantas / Divulgação

O General Heleno elucubra sobre sua exoneração do comando das Forças de Paz no Haiti, após uma desastrada ação na favela Cité Soleil, em Porto Príncipe. Esta é uma das cenas presentes em “Verdade”, escrito e dirigido por Alexandre Dal Farra, para o premiado grupo Tablado SP (novo nome do Tablado de Arruar). Revezam-se na interpretação dos personagens reais (com nomes verdadeiros) os atores André Capuano, Alexandra Tavares, Clayton Mariano, Gabriela Elias e Nilceia Vicente. As sessões acontecem no Centro Cultural São Paulo, de 14 a 31 de julho, com entrada gratuita. Em agosto, a peça faz apresentações gratuitas na Oficina Cultural Oswald de Andrade. 

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Assim como na trilogia “Abnegação” (2014-2016), que olhava criticamente para o PT, e no espetáculo Branco (2017), que abordava a questão da branquitude, em “Verdade” o grupo dá continuidade à proposta de debater questões políticas polêmicas e extremamente atuais. Agora, a dramaturgia se debruça sobre momentos decisivos da história recente, ficcionalizando os fatos. A obra é resultado de pesquisa coletiva de mais de dois anos, em que o Tablado organizou debates, leituras cênicas e outras ações, com o apoio da Lei de Fomento para a Cidade de São Paulo.  

Estão na peça, além do já citado General Heleno, outras figuras do Exército Brasileiro como os generais Hamilton Mourão, Eduardo Villas-Boas, Enzo Peri, Maynard Santa Rosa, Sérgio Etchegoyen, Carlos Alberto Santos Cruz, Edson Pujol e o coronel Paulo Malhães. E também personalidades da esquerda como no embate entre o ministro Aloizio Mercadante (Clayton Mariano) e a presidente Dilma Rousseff (Alexandra Tavares), quando da assinatura da lei que veio a instaurar a delação premiada. 

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O foco é a atual militarização do poder em curso no país. No palco, são tratadas questões políticas tendo como objeto de estudo as estratégias contemporâneas utilizadas pelos militares brasileiros para a ocupação do poder no Brasil, cuja gênese remete à Lei da Anistia (1979) e à Comissão da Verdade (2011-14). Por isso, “Verdade” busca olhar para os militares, com sua estrutura, a partir de hipóteses. 

Um dos conceitos que veio à tona ao longo da pesquisa, e que norteia a escrita da obra, é o termo ‘guerra híbrida’, uma “guerra por procuração”, em que os verdadeiros agentes do conflito permanecem invisíveis, e que já está em andamento no Brasil, com o avanço de militares em várias esferas do poder federal, de forma silenciosa, sem chamar a atenção. 

Saídos das páginas de política de qualquer noticiário recente, é no teatro que o público terá contato com ações que compõem estratégias que alguns identificam como sendo parte de uma guerra híbrida – no caso, efetuada para dentro do próprio país. Trata-se da tentativa de entender como se deu a ascensão do atual conservadorismo no país, a partir da ótica das Forças Armadas. 

Tanto a encenação, quanto a dramaturgia da obra se instauram por meio de um olhar que procura supor acontecimentos, situações, maneiras de pensar. Com um pressuposto documental, a obra narra momentos concretos da história recente do Brasil. “Evidentemente que não tivemos, e não teremos acesso ao que realmente ocorreu nesse dia, nessa sala de comando. Então, nos pusemos a imaginar hipóteses, para esta situação, e para todas as que se seguem”, explica Dal Farra

“O que o ponto de vista dos militares poderia nos dizer? Esta, a pergunta central que “Verdade” procura se colocar, sem ironia, sem pressupostos, sem julgamentos, sem certezas. É, no entanto, só depois de um bom tempo de peça, aonde vamos como que tentando retirar as camadas mais conhecidas, as nossas certezas sobre os militares, descascando-as aos poucos, e só depois é que se torna possível, talvez, tentar de fato imaginar algo do seu olhar sobre nós”, continua o diretor. 

Em cena, os atores vestem máscaras de látex, representando velhos genéricos – para transformar aqueles personagens em entidades algo impessoais, talvez fantasmagóricas. Ao retirarem as máscaras, os atores assumem então personagens reais – por exemplo, Nilcéia Vicente ora faz o papel de General Heleno, ora do Villas Boas, passando pelo Etchegoyen e por Bolsonaro. No entanto, o desencaixe entre ator e personagem nunca se perde, mantendo-se sempre explícito o gesto de se tratar de uma hipótese para algo que não temos como conhecer de fato. 

Em meio a todas essas camadas, que aos poucos vão se sobrepondo no tempo, a certa altura do espetáculo, instaura-se de fato um olhar plausível do que poderia ser um militar, e do que poderia de fato ser o olhar deles sobre nós. A hipótese como que ganha certa vida própria, e consegue se sustentar por algum tempo. 

As situações narradas iniciam-se em 2005, no quartel da Minustah, no Haiti, em uma sala de comando, quando o general Augusto Heleno dá às suas tropas as diretrizes para uma ação em Cité Soleil que depois será considerada como um massacre. E vão até o dia 6 de setembro de 2019, quando o então candidato à Presidência Jair Bolsonaro é vítima de uma facada em Juiz de Fora (MG). Quase sempre, o ponto de vista pretendido é do militar. 

Entre os outros fatos dramatizados estão a instauração da Comissão Nacional da Verdade, em 2010 (obrigada pela Corte Interamericana dos Direitos Humanos, depois de anos de luta das famílias dos mortos e desaparecidos da ditadura brasileira), uma entrevista concedida pelo Coronel Paulo Malhães a uma jornalista em sua residência (pouco tempo antes de ser assassinado, em um alegado oficialmente latrocínio), uma conversa entre o ministro Aloizio Mercadante e a presidente Dilma Rousseff, entre outras situações. 

Trata-se, assim, de um dispositivo narrativo bastante peculiar. “Em toda a obra, narramos algo que não temos ideia de como realmente foi. Isso instaura uma instabilidade constante, em que os atores, todos colocando-se como narradores, o tempo inteiro explicitam também que não sabem se aquilo que estão narrando ocorreu de fato, é, antes, uma hipótese, pois é parte da estrutura das Forças Armadas Brasileiras, que as suas práticas sejam plenamente secretas, e não haja caminhos para acessar de fato o que se passa em suas esferas de comando”, conta Dal Farra

Além da encenação, fazem parte de “Verdade” recursos cênicos como projeções – de fotos, vídeos, reproduções de notícias de jornais etc. – e uso de off para situar o espectador qual é a situação encenada e quando ela aconteceu. 

“Na atualidade, talvez em geral, e com certeza no que se refere à nossa relação com as Forças Armadas Brasileiras, o nosso maior problema não tem sido mais aquilo que não sabemos, mas sim, aquilo que achamos que sabemos. Achamos que sabemos tudo sobre o exército, seus generais, a maneira como pensam, e como agem. No entanto, durante dois anos de pesquisa sobre o assunto para a criação dessa peça, só o que descobrimos, mais e mais, é que não sabemos nada sobre eles, e que isso é intencional, isso é uma das coisas que é praticamente um consenso dentre os estudiosos, há uma atitude meticulosa que visa a manter parte da atuação das Forças Armadas desconhecida da população (até por razões de segurança, inclusive)”, conclui Dal Farra.

SERVIÇO

Espetáculo “Verdade”

Onde: Centro Cultural São Paulo

Endereço: Rua Vergueiro, 1000, Paraíso – São Paulo

Quando: 14 a 31 de julho

Horário: quinta a sábado às 21h e domingo às 19h

Quanto: entrada gratuita – retirar os ingressos uma hora antes do espetáculo

Classificação etária: 14 anos

Duração: 90 minutos

Informações: (11) 3397-4000 ou através do site

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