Num ano em que a Disney lança a rodo versões “live-actions” de suas animações clássicas, os personagens mais icônicos da ilustração brasileira também ganham um filme em que surgem totalmente encarnados. E pela primeira vez.
Coisa boa é o que não falta em ‘Turma da Mônica: Laços’, cujo roteiro é inspirado na HQ homônima dos irmãos Luciana e Vitor Cafaggi. A adaptação estética foge do lugar-comum. Uma fotografia que poderia ser chapada, inexpressiva, ganha personalidade e voz narrativa com seus tons amarelados de entardecer, ressaltando a nostalgia que cenários, objetos e figurinos vão nos provocando.
A época remota em que a trama se passa, pré-internet e demais tecnologias portáteis, corrobora o ar de inocência encontrado nos quadrinhos, abrindo caminho para diversas referências às aventuras infanto-juvenis que explodiram em Hollywood nos anos 80 – onda que tem sido impulsionada pela série ‘Stranger Things’ (2016), e da qual a produção nacional se aproveita com êxito. Ver o quarteto protagonista andar de bicicleta pelo parque é apenas um dos gatilhos que nos leva diretamente a títulos como ‘E.T.’ (1982), ‘Os Goonies’ (1985) e ‘Conta Comigo’ (1986).
Mais do que a busca pelo cachorrinho sequestrado, mote principal da aventura em que a turminha se envolve – e cujo desenrolar do mistério até nos cansa em certo ponto – são gestos simples, mas de significados profundos, que realmente mexem com o público em ‘Laços’ e fundamentam seu grande tema: a amizade.
Em apenas seu segundo filme como diretor (após ‘Bingo’, de 2017), Daniel Rezende, indicado ao Oscar pela montagem de ‘Cidade de Deus’ (2002), trabalha de maneira especial a interação entre os olhares dos personagens, algo tão raro ao cinema. A forma como esses olhos se encontram, e por consequência encontram também os nossos, é a grande expressão simbólica desses laços de que o subtítulo nos fala.
É na silenciosa troca de olhares entre Mônica e Cebolinha na floresta, por exemplo, que vivemos a maior tensão emocional do filme. Na verdade, um silêncio que ensurdece, surpreende, nos conectando a esses personagens como jamais esperaríamos, humanizados no mais alto grau pelo simples, pertinente e brilhantemente executado registro dos olhares.
Rezende se sai igualmente bem na tabela com um inspirado Rodrigo Santoro. Interpretando o Louco, excêntrica figura que costuma atormentar Cebolinha nos quadrinhos, a enérgica performance do ator se dá em sintonia com o dinâmico jogo de câmeras e cortes que o diretor promove a fim de que Santoro surja de uma hora para outra em cena. O resultado, que em outras produções seria buscado por meio de dispendiosos efeitos visuais, denota mais uma vez um apurado conhecimento das técnicas que visam a essência do cinema: iludir através de imagens e, especialmente, da ordem e do ritmo em que nos são apresentadas – a edição em si.
Os fãs mais antigos ainda vão se divertir com as rápidas aparições de outros personagens secundários (Jeremias, Xaveco, Titi e Aninha, por exemplo, surgem logo no início). Há, também, referências à outros universos da obra de Mauricio de Sousa (Jotalhão, Horácio, Turma do Penadinho). Além de uma breve participação do próprio criador, que, aliás, para se dizer “ao melhor estilo Stan Lee“, precisaria de um desfecho mais sagaz.
Mesmo sem alcançar (por pouco) a excelência dos já citados títulos estrangeiros que referencia, no que diz respeito ao gênero infanto-juvenil, ‘Laços’ já é um marco do cinema nacional. Mais do que merecer ser visto, é o público que merece, o quanto antes, uma oportunidade para conferi-lo.
Turma da Mônica: Laços – Brasil, 97 min, 2019. Dir.: Daniel Rezende – Estreou em 27/6. Assista ao trailer: