por Leonardo Lichote
Hamilton de Holanda tem duas memórias muito marcadas de Djavan, a quem homenageia agora no álbum “Samurai”. A primeira delas da adolescência, quando “Sina” era o carro-chefe do repertório da banda que tinha com amigos da escola. A segunda é de quando voltou ao Brasil, depois de uma temporada em Paris, e recém-chegado ao Rio de Janeiro, ganhou de presente do compositor uma canção feita especialmente para que o bandolinista gravasse com ele a faixa-título do disco “Vaidade”, de 2004.
DJAVAN LANÇA O ENIGMÁTICO E PROVOCATIVO ÁLBUM “D” COM O CLIPE DE “ILUMINADO” AO LADO DA FAMÍLIA
“Foi um dos primeiros grandes artistas a abrir as portas pra mim”, lembra Hamilton. “Na gravação, a melodia é apresentada toda pelo bandolim, só depois entra a parte do canto, da poesia. Naquela ocasião, já imaginei que um dia faria um disco todo só com músicas de Djavan. Agora chegou a hora”.
Com produção de Hamilton e de Marcos Portinari, “Samurai” reúne 12 faixas, entre gravações instrumentais e cantadas. O time de cantores convidados mostra a vastidão não apenas da música de Djavan, mas também do olhar do bandolinista. Estão lá, além do próprio homenageado (em “Luz” e “Lambada de Serpente”), Zeca Pagodinho (“Flor de Lis”), o uruguaio Jorge Drexler (“Lilás”), Gloria Groove (“Samurai”) e a indiana Varijashree Venugopal (vocalises em “Oceano”).
Os instrumentistas convidados também dão um panorama da riqueza da música de Djavan e de Hamilton: o pianista cubano Gonzalo Rubalcaba em “Irmã de Neon” e a saxofonista americana Lakecia Benjamin em “Samurai”. A banda base que acompanha Hamilton é formada pelo pianista Salomão Soares (que é creditado merecidamente com destaque como convidado em “Capim”), o baterista Big Rabello e o baixista André Vasconcellos, com participações dos percussionistas Armando Marçal e André Siqueira, além de trombonista Rafael Rocha, que assina o arranjo de cordas em “Lambada de Serpente”.
“Acabou virando um disco multicultural: Cuba, Índia, Uruguai, Estados Unidos…”, brinca o bandolinista, expondo as fronteiras do disco que se expande ainda para a Europa ibérica moura e mergulha no Nordeste brasileiro, territórios de Djavan. Multiculturalidade, amplidão, riqueza… Palavras como essas são naturalmente evocadas quando se pensa em Djavan, em Hamilton e, especialmente, neste “Samurai”. O álbum é puro Djavan e puro Hamilton — “puro” aqui no sentido que a palavra tem de nobreza e raridade, não da qualidade do que é avesso a misturas. “Samurai” — como o compositor alagoano e o bandolinista carioca — mira exatamente no oposto: ser único e ser muitos ao mesmo tempo.
“A música do Djavan tem algo que busco na minha vida”, resume Hamilton. “Ela tem um comprometimento com o tempo. Com o passado, na forma como artistas como Luiz Gonzaga estão ali. Com o futuro, em sua característica de vanguarda. E com o presente, na leveza de festa, de ser agradável, trazer alegria e emoção pras pessoas”. Frente a essa música que atravessa tempos, Hamilton encarou o desafio de selecionar, do universo de Djavan, o que iluminaria em “Samurai”.
Em primeiro lugar, entendeu que não descaracterizaria a essência das canções, suas melodias, harmonias, riffs mais marcantes. Com essa ideia em mente, escolheu composições que dialogassem melhor com seu bandolim, seja pela linguagem jazzística (como “Malásia”), seja pelos aspectos afetivos (como a velha conhecida “Sina”), seja pela liberdade de expandir as fronteiras do samba (como “Capim”).
Um álbum de Djavan serve de chão para Hamilton em “Samurai”. Quatro das 12 canções do disco são de “Luz”, de 1982 — “Samurai”, “Luz”, “Capim” e “Sina”. “É um momento da carreira dele que gosto muito”, justifica o bandolinista. “Djavan consegue com elementos complexos soar simples, prazeroso, natural. E esse disco, ‘Luz’, é especialmente representativo nesse sentido, é uma síntese disso”.
“Faltando um Pedaço” (assista ao clipe abaixo) (do álbum “Seduzir”, de 1980) abre o disco ilustrando à perfeição o desejo de Hamilton de respeitar a arquitetura de Djavan. A introdução em baião reproduz, com molho do bandolinista, a da gravação original. E o carinho com que conduz a melodia expõe todo amor do instrumentista à beleza da música do homenageado — ele conta que baixou a música meio tom pra “apertar mais ainda o coração”.
Hamilton passeia com familiaridade pela melodia de tons mouros de “Malásia” (do disco homônimo de 1996). A faixa tem a participação de Marçal, que está presente também na gravação original de Djavan. Outro músico do álbum “Samurai” que tocou com o alagoano é André Vasconcellos. O baixista, que na juventude fazia parte da turma do bandolinista em Brasília, está em momentos importantes da carreira de Djavan, como a turnê que gerou o campeão de vendas “Ao vivo”, de 1999.
Engrandecida pela delicada e precisão da voz de Varijashree Venugopal, “Oceano” (do álbum “Djavan”, de 1989) é dos momentos mais lindos de “Samurai”. Hamilton bebe do arranjo original — seu solo, por exemplo, conversa com o original, de Paco de Lucia — para construir uma leitura ao mesmo tempo reverente e nova.
“Flor de Lis” (do disco “A voz, o violão, a música de Djavan”, de 1975) traz a primeira participação vocal, com Zeca Pagodinho revigorando o hit de Djavan com uma divisão plena de malandragem e técnica. Muito do suingue entra também na conta das teclas de Salomão, das baquetas de Big e da percussão de Marçal e Siqueira — este toca instrumentos como repique, aproximando a canção do Cacique de Ramos onde brotou a rara flor de lis de Pagodinho.
Outra de “Malásia”, “Irmã de Neon” tem sua latinidade, terreno caro a Djavan, encharcada do tempero cubano de Gonzalo Rubalcaba. É sempre impressionante ver a comunicação surpreendente e sedutora da música de Hamilton e Rubalcaba. E desta vez não é diferente.
Djavan em pessoa aparece pela primeira vez no disco em “Luz” (do já citado álbum homônimo), com seu canto que é uma aula sobre a melodia cheia de quebras rítmicas. Em seu bandolim, Hamilton sustenta o nível. “Asa” (pinçada de “Meu Lado”, de 1986), que vem na sequência, soa moderna como nunca e como sempre em sua alegria de timbres brilhantes.
“Capim” (também de “Luz”) é, na definição de Hamilton, uma viagem no tempo: “Pegamos o DeLorean (máquina do tempo de “De volta para o futuro”) e fomos para a década de 1970”. O balanço é irresistível, misto de funk e samba-jazz. O bandolinista revela a dificuldade de cravar o ritmo exato da frase inicial da canção (equivalente aos versos “Capim do Vale/ Vara de goiabeira/ Na beira do rio/ Paro para me benzer”): “Sem exagero, tive que repetir umas 100 vezes pra fazer certinho. E só consegui acertar cantando junto, baixinho. Djavan percebeu o cuidado e comentou que a melodia ficou exata, uma preocupação minha no disco como um todo”.
“Lambada de Serpente” (de “Alumbramento”, de 1979) retoma o Djavan mais dolente e romântico. O compositor participa da faixa, cantando sobre as cordas – uma referência à gravação original, que tem um violoncelo que se destaca em seu ambiente rural. A fase do flerte mais marcado de Djavan com os sintetizadores está representada em “Lilás” (do álbum homônimo, de 1984), que tem a voz de Jorge Drexler. O arranjo da gravação de Hamilton acompanha o clima do original, com timbres eletrônicos, inclusive no bandolim:
“Foi a primeira vez na vida em que gravei o bandolim trabalhado com efeitos, o que acabei fazendo em outros momentos do disco, como em ‘Asa’ e ‘Samurai’”, conta Hamilton, adiantando que isso talvez possa apontar pra caminhos inexplorados no futuro. “Estou gostando de encontrar novos sons pro instrumento”.
A memória da juventude, da descoberta de Djavan por Hamilton, está marcada em “Sina” (também de “Luz”). O bandolinista conta que “quis trazer essa leveza desse período alegre” de sua vida. O ritmo do ijexá é acentuado, assim como sua vocação pop. Por fim, “Samurai” (outra de “Luz”) vai ainda mais fundo no pop, com seu groove à la Stevie Wonder, o canto de Gloria Groove e o sax de Lakecia Benjamin. A gravação é exuberante, o que inclui três bandolins de Hamilton, com diferentes timbres e efeitos. “É a festa final”, define Hamilton, que não por acaso a escolheu para batizar o disco.
Hamilton recorre à imagem do flamenco para dar conta de seu entendimento sobre “Samurai”. “Amo o flamenco porque nele tudo se integra. O cantante, o bailante e o guitarrista são igualmente importantes. Gosto de pensar em ‘Samurai’ assim”, explica o bandolinista, dando a chave para se chegar ao núcleo do disco, no qual mente, coração e quadril andam juntos. Ouça o álbum na íntegra: