Romance “Serena”, do mestre inglês Ian McEwan, discute o poder destrutivo da ficção

O enredo do livro mostra que a experiência da leitura é egoísta, e, por vezes, cruel
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29.03.2020

Mathieu Bourgois / AP

A literatura tem um alcance ideológico que vai muito além de belas construções poéticas e lições de moral. A literatura é nefasta e potencializa desgraças concretas. O romance “Serena” (“SweetTooth”, no original) é sobre o poder funesto da criação ficcional no mundo contemporâneo, sobre o contar e ler histórias. É metaliteratura.

Gênio da ficção contemporânea, o inglês Ian McEwan ganhou notoriedade internacional com o romance “Reparação” (2001), pelo qual recebeu o Los Angeles Times Book Prize. Adaptado para o cinema (no Brasil, “Desejo e Reparação”) em 2007, o romance fala do poder da criatividade, sobretudo com a formidável personagem Briony, que, com apenas 13 anos, elabora uma trama tão complexa que destrói a vida de todos a seu redor.

O tema é retomado em “Serena”, editado no Brasil pela Companhia das Letras. “Acho que todos os romances são sobre espionagem, já que são investigações”, costuma dizer McEwan. Em “Serena”, o leitor cumpre o papel de espião juntamente com a protagonista. É impossível resistir à leitura de um romance com a seguinte abertura: “Meu nome é Serena Frome (a pronúncia é Frum) e há quase quarenta anos fui enviada numa missão secreta do Serviço de Segurança britânico. Eu não voltei em segurança. Um ano e meio depois de entrar fui despedida, depois de ter caído em desgraça e acabado com a vida do meu namorado, embora ele certamente tenha tido um pouco a ver com sua própria queda”.

Educação moral

A história acompanha o desenvolvimento intelectual da bela Serena, sobretudo após seu ingresso na Universidade de Cambridge para cursar Matemática. Apesar de apaixonada por literatura – sobretudo por histórias sem complexidade – ela se destacava em Matemática no Ensino Médio e foi convencida por seus pais – um admirado bispo anglicano e uma dona de casa com ares feminista – a ingressar nesse curso, pois acreditavam que ela não tinha grande talento para as Letras.

Nos meandros de sua vivência universitária, é marcante quando Serena descobre o escritor russo Alexander Soljenítsin, autor de “Um dia na vida de Ivan Deníssovitch” e “O primeiro círculo”. As descrições sobre os gulags – campos de trabalho forçado na União Soviética – sustentam o anticomunismo de Serena. É amor à primeira leitura. “A testa que se erguia como uma cúpula ortodoxa, a barbinha passa-piolho, a autoridade austera que o gulag tinha lhe conferido, a sua teimosa imunidade aos políticos. Nem as convicções religiosas dele conseguiam me deter. Eu o perdoei quando ele disse que o homem tinha esquecido Deus. Ele era Deus. Quem podia estar à altura dele? Quem podia lhe negar o prêmio Nobel? Encarando a fotografia dele, eu queria ser a sua namorada. Eu teria sido uma criada dele como a minha mãe foi do meu pai. Guardar as meinhas dele? Eu teria caído de joelhos para lavar os pés daquele homem. Com a língua!”.

Na universidade, a paixão por um estudante de História dá início a uma série de acontecimentos marcantes para a vida da personagem. O primeiro e mais emblemático é quando conhece o orientador de seu namorado, o professor Tony Canning. Com ele, Serena aprende a apreciar os clássicos da literatura mundial, a contestar acontecimentos históricos, a saborear vinhos e trufas. Vive o melhor da vida. “Eu lembro de tudo – a mesa de pinho lixada com as pernas de um azul-piscina todo lascado, a grande vasilha de faiança com os porcini escorregadios, o disco de polenta como um sol em miniatura sobre um prato verde-claro com a cerâmica rachada, a garrafa de vinho preta e empoeirada, a rúcula apimentada numa tigelinha branca trincada, e Tony fazendo o molho em questão de segundos, virando o óleo e apertando meio limão com a mão ainda enquanto, ou pelo menos era o que parecia, levava a salada até a mesa”.

Canning é seu tutor moral e sexual. Ele também a prepara para ingressar no Serviço Secreto Britânico, o MI5. Nessa parte do livro, é impossível não se lembrar do filme “Educação” (“AnEducation”, 2009), no qual a doce e inteligente Jenny Carey (interpretada pela inglesa Carey Mulligan), uma adolescente de 16 anos, apaixona-se por um homem mais velho, que a educa a partir das experiências de vida. Tony Canning também ensina a Serena que nem toda ficção é boa: por vezes, é melhor contemplar e sentir o mundo do que ler bobagens e análises pífias. Mesmo com os ensinamentos, Serena continua “a mais simples das leitoras. Só queria o meu mundo, comigo dentro, devolvido para mim de maneiras artísticas e de uma forma acessível”.

Serviço secreto

Abandonada por Canning, Serena Frome ingressa no MI5 na década de 70, quando as disputas ideológicas da Guerra Fria estão em plena ebulição. Crise econômica, manifestações de trabalhadores, política internacional, contracultura e terrorismo formam pano de fundo para o trabalho de Serena no Serviço Secreto. Ela aprende que cultura e política andam sempre de mãos dadas, suspirando apaixonadas uma pela outra. No MI5, é instruída que a Inglaterra atua como um mecenas oculto para jovens artistas. George Orwell, por exemplo, teria sido um desses escritores indiretamente patrocinados pelo Estado. Obras como “1984” e “Revolução dos Bichos” seriam aparatos ideológicos para que os ingleses entendessem de uma vez por todas os malefícios de governos comunistas. Seria a Inglaterra maior do que as individualidades culturais de seus cidadãos? Até que ponto o Estado pode utilizar a coação para deter as divergências? São algumas das indagações propostas por McEwan no enredo.

Os momentos mais brilhantes do livro começam quando a protagonista vê-se envolvida em sua primeira missão de destaque, a Operação Tentação. O trabalho consiste em convencer o jovem escritor Tom Healy a produzir textos favoráveis ao sistema capitalista (sem que ele saiba que está sendo manipulado pelo MI5, é claro). Primeiro, é preciso ler tudo o que Healy já produziu. Nas passagens “livros dentro do livro”, o leitor pode se deliciar e viajar com Serena nos contos “Eis o amor” e “Manequim”.

O mal da ficção

Sentimentos e obrigações estão numa batalha fervorosa no íntimo de Serena, principalmente quando ela se apaixona pelo escritor. “Ele era o meu projeto, o meu caso, a minha missão. A arte dele, o meu trabalho e a nossa história eram uma coisa só. Se ele fracassasse, eu fracassava. Simples, então – nós íamos triunfar juntos”. O enredo de “Serena” mostra que a experiência da leitura é egoísta, e, por vezes, cruel. É a prova concreta de que a história é sempre uma construção possível do real e de que a ficção também é destruição. Se para a protagonista “os escritores tinham para com os seus leitores uma dívida de cuidado, de misericórdia”, Ian McEwan é impiedoso com o leitor: nesse romance poderoso e genial, não há nada mais gratificante do que ser enganado em cada palavra.

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