Ousadia de Jennifer Egan produz histórias sinistras e inesquecíveis, como “O Torreão”

Uma das poucas autoras jovens que ousam fugir da mediocridade das histórias dualistas
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09.04.2020

Divulgação

Verme. Alto. Palavras não abarcam as entranhas subjetivas do homem. Não explicam dores, não espelham felicidade, não comportam o diverso. “A língua inglesa se revelou escassa: perspectiva, visão, conhecimento, sabedoria – aquelas palavras eram todas pesadas demais ou leves demais (…). O verdadeiro alto agia de duas maneiras: você via, mas também ser visto, você conhecia e era conhecido. Reconhecimento de mão dupla”, explica o inquieto narrador do livro O Torreão (The Keep, no original), escrito pela americana Jennifer Egan, cujo livro A visita cruel do tempo recebeu o prêmio Pulitzer de Ficção em 2011, o Los Angeles Times Book Prize e o National Book Circle Award.

Originalmente de 2006, mas publicado somente em 2012 no Brasil, O Torreão (Editora Intrínseca) é uma epopeia às palavras. Muitos críticos e leitores disseram que a obra é um livro de terror. Outros preferem classificá-lo como gótico. Neogótico. Alguns gostam de “pós-moderno”. Desculpem-me fãs de Zygmunt Bauman, mas o conceito de que tudo é líquido é complicado. Líquido vaza, escorre, enfim, perde-se. Egan, não. Transgride do começo ao fim, mas nunca vaza. Fiquemos, por enquanto, sem colocar a obra num gênero literário tradicional.

O castelo, a prisão, o verme

A história começa quando o milionário Howard chama seu primo Danny, um nova-iorquino viciado em tecnologia, para ajudá-lo a transformar um decadente castelo medieval europeu num hotel de luxo. Howard quer que sua propriedade tenha um diferencial. Cabe a Danny ajudar a encontrá-lo.

Chegando ao castelo – as primeiras impressões do protagonista sobre o local são incrivelmente engraçadas e sombrias – Danny busca o local perfeito para instalar sua antena parabólica portátil: o sinal para celular é questão de vida ou morte: “parecia uma necessidade primitiva, como uma ânsia para rir, espirrar ou comer (…) precisava voltar a entrar em contato já, senão alguma coisa terrível ia acontecer: sua cabeça ia explodir, um quarto ia se encher de água até o teto, uma grande lâmina giratória começaria a serrar sua coluna”. É o estereótipo do adicto em contato mediado por aparelhos tecnológicos.

Preso na realidade do castelo – onde terá de lidar com personagens como Mick (braço direito de Howard), Ann (a esposa do primo) e Benjy (o filho pequeno) – Danny é obrigado a refletir, rememorar. E a lidar com o verme. “Era assim que o verme entrava. Você se abria para aquele tipo de pensamento e o verme rastejava para dentro, começava a comer e só parava quando não sobrava mais nada (…). O verme devorava as pessoas do mesmo jeito que os anos tinham devorado aquele castelo: roendo os tetos, mastigando as paredes, abrindo túneis por baixo das tábuas do assoalho, até que mesmo um corredor reformado com todo o esmero, com portas envernizadas e velas falsas nas paredes, tivesse mil insetos rastejando para todos os lados alguns andares abaixo”.

Um problema no passado é determinante na obscura relação entre os primos. São as marcas da infância moldando rostos presentes e futuros. Leitores de “O Caçador de Pipas”, de Khaled Hosseini, e espectadores de “Sobre Meninos e Lobos” – sem dúvida o filme é mais popular do que o romance original, de Dennis Lehane – conhecem bem o peso da culpa na trajetória do ser humano.

Passados algumas páginas de O Torreão, o leitor descobre Ray, o narrador que conta a história passada no castelo europeu num curso de escrita criativa oferecido pela prisão onde cumpre pena. Por assassinato. É Ray quem divide suas angústias estéticas com o leitor. Para impressionar sua professora, Holly, o prisioneiro narra os acontecimentos de Danny com a maior verossimilhança possível.

Dois cenários se contrapõem no enredo de Jennifer Egan: o misterioso castelo no Leste Europeu e a prisão norte-americana onde Ray escreve. Nas dependências do castelo, três lugares merecem destaque merecem destaque na construção narrativa: a piscina verde, o subterrâneo e, claro, o torreão, único lugar impenetrável da fortaleza. Ainda habitado por uma baronesa pertencente à antiga família nobre que originou o local, os Von Ausblinker, o torreão esconde uma antiga masmorra com objetos de tortura. Howard quer encontrá-la a todo custo para mostrar aos futuros hóspedes do hotel.

Medo e inquietude

Em suas aventuras pelo castelo, Danny subverte o conceito de medo. Se habitualmente o medo paralisa, o pavor de Danny impele. Há medo em cada centímetro do castelo. Fantasmas, lodo, frio e cabelos longamente brancos. Realidade e fantasia misturam-se perigosamente na cabeça do personagem. E os cheiros. “Ah, meu Deus, que cheiro: não de podre, mas de alguma coisa para além do podre, de um vazio mofado, o cheiro de pólen bolorento, de mau hálito, de geladeiras velhas que passaram anos sem serem abertas, de ovos podres e de certas lãs quando ficam molhadas, da placenta de sua gata Polly quando Danny tinha seis anos, de seu dente doído quando o dentista o abriu com a broca, do asilo onde sua tia-avó Bertir babava o patê de fígado pelo queixo, daquele lugar embaixo da ponte perto da escola onde os montes de merda eram supostamente humanos, da cesta de lixo que ficava embaixo da pia do banheiro de sua mãe”.

Talvez O Torreão seja um livro de memórias dos narradores. A autora evita encaixar suas produções em algum gênero literário. Egan brinca com a narrativa, evita tipificações e subverte os discursos dos personagens e dos narradores. Brinca também com os limites do real e da fantasia. Danny delira. E muito. Mas o leitor não sabe exatamente os “quandos”.

Jennifer Egan é uma das poucas autoras jovens que ousam fugir da mediocridade das histórias dualistas. Não escreve narrativas simples. A complexidade gera a necessidade (e vontade) de uma segunda leitura. Egan não faz literatura pura: faz exercício narrativo, oficina criativa de escrita. Faz texto inquieto. Talvez por isso seja tão única. Tão genial. E, infelizmente, tão solitária.

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