Produzido sob medida para estrear em época eleitoral, ‘O Doutrinador’ é a superprodução nacional do ano. Só a versão para o cinema consumiu R$ 8 milhões – com mais alguns milhões investidos na série de sete episódios que o canal Space exibirá em 2019. Carregada de efeitos especiais e cenas de ação, é inspirada na HQ do designer carioca Luciano Cunha, surgida a partir dos protestos de 2013, e se passa durante as eleições presidenciais de um país fictício.
O fato da capital dessa nação se chamar Santa Cruz, tal qual um dos primeiros nomes dado ao Brasil pelos portugueses, é só a ponta de um enredo predominantemente pautado por metáforas. Os escândalos recentes de corrupção no país não apenas são contemplados, como constituem a força motriz das ações.
Começamos com a prisão do governador Sandro Correa (Eduardo Moscovis). Qualquer relação com o ocorrido com os ex-governadores do Rio, Sérgio Cabral e Anthony Garotinho, não é mera coincidência. Muito menos que as iniciais do primeiro sejam as mesmas do personagem (SC). Correa é acusado de desviar verbas da área da saúde.
Mais a frente, Miguel (Kiko Pissolato), um dos agentes envolvidos na operação que deflagrou a prisão do governador, vê sua filha padecer devido à precariedade do atendimento médico da rede pública. A tragédia familiar sustenta sua indignação. A esta altura, Correa volta à liberdade, e Miguel não desperdiça a oportunidade de fazer justiça com as próprias mãos. Insatisfeito, e valendo-se de suas habilidades como policial de elite, resolve ir adiante e eliminar cada uma das peças que compõem a corrompida engrenagem do sistema político de seu país. Nasce o Doutrinador.
Esse anti-herói nacional, que sai “atirando para matar” nos políticos país afora, tem direito a aos clichês mais famosos do gênero, ainda que os negue: “isso só acontece em filme americano”, ouve-se em certo momento. E na cena seguinte lá está ele, no topo de um alto prédio, observando a cidade durante a noite. Como não poderia faltar, para se aproximar das futuras vítimas, terá a ajuda de Nina (Tainá Medina), uma especialista em burlar sistemas de segurança e invadir computadores alheios.
Interessante mesmo é ver as obscuras negociatas. Marília ‘Gabi’ Gabriela destaca-se interpretando Marta Regina, ministra que, em troca de modais quantias, se encarrega de aliviar a barra do grupo político liderado pelo veterano Antero Gomes (Carlos Betão) junto a instâncias superiores, em clara alusão ao “grande acordo nacional”.
As reuniões na casa de Antero fomentam definitivamente nossa antipatia pela classe, dando vazão à gráfica sanguinolência que o Doutrinador promoverá. “Vamos parar de gracinha porque aqui não é o Congresso. Nós estamos aqui para trabalhar”, debocha o anfitrião, abrindo a reunião que definirá qual deles disputará a eleição presidencial. O escolhido é seu garoto, Anterinho. Inexperiente e visivelmente desconfortável, mas único ficha limpa do grupo.
É desta forma, sem escolher lado ou partido, e com incríveis requintes proféticos, que ‘O Doutrinador’ é capaz de lavar a alma de vencedores e vencidos na atual eleição, embora a conduta arbitrária de seu protagonista, sobretudo no impactante desfecho, jogue mais pólvora sobre os acirrados ânimos da população, ainda no calor de um polêmico pleito recém-concluído. É importante que o “cidadão de bem” compreenda a metáfora que, prudentemente, os produtores fazem questão de frisar em entrevistas: a maneira mais nobre e eficaz de aniquilar esse tipo de político continua sendo através de nossa atitude diante da urna eleitoral.
O Doutrinador – Brasil, 101 min, 2018. Dir.: Gustavo Bonafé e Fábio Mendonça – Estreou em 01/11. Assista ao trailer: