O “Caso Rembrandt” (The Rembrandt Affair, no original), escrito pelo americano Daniel Silva, chegou às livrarias juntamente com um filme da franquia 007 Skyfall, em 2012. Seria mais um romance de espionagem previsível e sem charme com tantos do mercado editorial? Definitivamente, não. A narrativa começa quando o restaurador de arte Cristopher Lidell é assassinado em Glastonburry, Inglaterra. Lidell trabalhava na obra “O retrato de uma jovem”, de Rembrandt, que é levada pelo ladrão. Como já tinha arrematado o quadro para um museu norte-americano, o negociador de arte Julian Iserwood se desespera com os acontecimentos, sendo obrigado a pedir ajuda a um amigo, o restaurador (e também espião) israelense Gabriel Allon.
Isherwood é “um homem contraditório. Perspicaz, mas imprudente. Brilhante, mas ingênuo. Reservado como um espião, mas com uma confiança nos outros que beirava a estupidez. De forma geral, porém, era uma pessoa divertida”. Não será fácil convencer Allon a largar sua precoce aposentadoria na Península do Lagarto, região da Cornualha, Inglaterra. O indecifrável Allon – já conhecido de outros romances de Daniel Silva – está inerte, traumatizado após um atentado sofrido por ele e sua bela esposa, Chiara. Paisagens idílicas em contraste com as vivências dos personagens passam a marcar a história. “Gabriel observava as gaivotas flutuando como pipas sobre o topo da península. Sua cabeça, porém, estava na floresta de bétulas a leste de Moscou. Ele estava ao lado de Chiara na beira de uma cova recente, as mãos atadas nas costas e os olhos fixos no cano de uma pistola de calibre grosso”.
Num mundo onde roubar uma obra de arte é mais fácil do que um item de loja de departamentos, o leitor desvenda ao longo do romance um intricado e eficiente mercado paralelo. “Um Veermer roubado de um museu de Amsterdã, por exemplo, pode acabar nas mãos de uma gangue de tráfico de drogas na Bélgica ou na França, que por sua vez pode usar o quadro como garantia ou pagamento à vista em troca de um carregamento de heroína na Turquia. Uma única pintura pode circular dessa forma por anos, passando de um criminoso para outro, até alguém decidir trocá-la por dinheiro”. Em três partes – Procedência, Atribuição e Autenticação – o protagonista revela ao leitor que política e arte são indissociáveis. “Por baixo do verniz reluzente e das pinceladas imaculadas na superfície havia camadas de sombras e mentiras”.
Restaurador, espião
Gabriel Allon tem momentos bem díspares no livro: do melancólico restaurador de arte da primeira parte ao espião bem treinado com licença para matar. Allon dedicou mais de 30 anos de sua vida ao Serviço Secreto Israelense. Aposentado e traumatizado, dedica-se a restaurar obras de arte de relevância internacional. “O talento de Gabriel com o pincel era equivalente a um truque de magia ou ilusionismo. Era algo a ser explorado, assim como seu dom peculiar para aprender idiomas e sua capacidade de sacar a pistola Beretta do coldre e ficar em posição de tiro no espaço de tempo que a maioria dos homens leva para bater palmas uma vez”.
O momento de passagem entre Allon/artista e Allon/matador é o emocionante encontro com Lena Herzfeld, judia de Amsterdã que perdeu toda a família durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). As descrições de Lena de suas experiências de guerra constituem o ápice do livro, essencial para compreender os porquês do roubo do Rembrandt. Holocausto, roubo, terrorismo e mentiras, muitas mentiras, combinam-se de forma apaixonante na trama. Com as revelações da frágil senhora Herzfeld, Allon e outros espiões partem numa jornada em busca de respostas ao redor do mundo, de Buenos Aires ao Lago Genebra, na Suíça. No caminho, personagens como a jornalista Zoe Reed e o milionário Martin Landesmann – conhecido por seus trabalhos filantrópicos – tornam-se essenciais na trajetória.
Autor
Daniel Silva é extraordinário. As descrições das cenas e personagens são precisas, mas nunca enfadonhas. O leitor torna-se espião com as revelações da história. Enquanto Ian Fleming (1908-1964), criador de James Bond, permanecia fiel à narrativa dualista (espião sedutor x vilão megalomaníaco e destruidor do mundo), Silva investe na complexidade dos personagens. Não há bem ou mal, todos têm múltiplas camadas. Os combatentes das agências de espionagem envolvidas na trama (israelense, inglesa e norte-americana) têm ações dignas de assassinos mercenários. Mas há uma semelhança gritante entre Bond e Gabriel Allon: os olhos, tão profundamente inebriantes quanto os do ator Daniel Craig, intérprete de Bond nos filmes mais recentes.
Se John Le Carré é considerado um mestre nas histórias de espionagem contemporâneas, o discreto Silva supera o escritor britânico em termos de fluidez e coesão. E mais: Silva é um amante de suas próprias criações. Nas dezenas de romances de espionagem já publicados pelo autor, há um capricho na descrição dos personagens e caracterizações psicológicas: todos na trama – do assassino do restaurador aos chefes das agências de espionagem – têm cicatrizes imunes ao mais potente dos remédios.
Silva – que, apesar do nome “brasileiro”, é norte-americano e filho de açorianos – realizou uma impressionante pesquisa histórica para compor a narrativa. As descrições dos processos de restauração de obras, das minúcias do mercado de arte, das falhas dos sistemas de segurança dos museus e das armas terroristas são dignas de um historiador erudito, com a vantagem criativa de um ficcionista. Pode-se definir “O caso Rembrandt” – que chegou ao topo do ranking do jornal The New York Times – como uma “narrativa de ganância, desapropriação e morte”, como descrevem os próprios espiões durante uma das tantas reuniões das agências de espionagem. Na verdade, é uma história de guerra, espionagem, suspense, redenção. Multigênero, o romance esconde mais segredos do que o olhar da jovem pintada por Rembrandt.