Novo filme de Jordan Peele, ‘Nós’ é ainda mais macabro que ‘Corra!’

Diretor/roteirista retoma críticas político-sociais comuns ao gênero nos anos 60 e 70
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04.04.2019

Divulgação / Reprodução

Após o enorme sucesso de ‘Corra!’ em 2017, que rendeu o Oscar de roteiro original para Jordan Peele, o também diretor retorna este ano com ‘Nós’, seu segundo longa-metragem. Mais uma vez protagonizado por negros, e novamente imbuído de críticas à uma sociedade implicitamente racista, o que também não falta em seu novo filme é o humor ácido que marcou sua carreira ao longo desta década.

Se em ‘Corra!’ a trama trazia requintes de crueldade e ficção científica barata, o enredo de ‘Nós’ é ainda mais macabro. Adelaide e Gabe Wilson (Lupita Nyong’o e Winston Duke, que atuaram em ‘Pantera Negra’) acabam de chegar com o casal de filhos para uma temporada na casa de veraneio da família. Na mesma noite são surpreendidos por cópias idênticas a eles espreitando a residência.

São clones baseados na lenda germânica do “doppelgänger”, ou o “mito do duplo”, em que uma entidade surge como uma cópia fisicamente idêntica a pessoa, mas com caráter e personalidade opostas, ou carregando de maneira acentuada os traços negativos do par original. Conviver em harmonia não está nos planos dos invasores. Começa a perseguição.

Peele não tenta inventar a roda, fazendo uso dos bons clichês e padrões do horror/terror sempre que lhe convém. A canção dos créditos iniciais, por exemplo, segue a tradicional cartilha do gênero: cantada em latim (como em ‘A Profecia’, 1976) e por vozes infantis – ou infantilizadas (tal qual em ‘O Bebê de Rosemary’, 1968), sua melodia fúnebre anuncia o clima sombrio e misterioso que predominará mais adiante.

Da mesma forma, deixa de lado artifícios apelativos comuns a este tipo de filme. Por isso, não busca nos provocar sustos através de sons, cortes ou movimentos de câmera ríspidos que nos revelem abruptamente imagens horripilantes. O diretor/roteirista confia que a história que conta é tenebrosa o suficiente, apostando mais no crescente estranhamento que as cenas nos causam.

Contudo, os momentos mais fortes em ‘Nós’ são aqueles pontuados pelo toque de humor característico de Peele. É então que fica evidente seu diálogo com o cinema de horror hollywoodiano dos anos 60 e 70, que o cineasta já havia estabelecido em ‘Corra!’.

Nós Jordan Peele

Ao usar o gênero como ponte para uma crítica político-social, ele cria laços sobretudo com produções como ‘A Noite dos Mortos-Vivos’ (1968) e sua primeira sequência, ‘Despertar dos Mortos’ (1978), ambas de George A. Romero (1940-2017), que também carregam reflexões sobre a questão racial. O tema estava em ebulição na época, com os desdobramentos do assassinato de Martin Luther King (1929-1968) e a continuidade dos protestos pelos direitos civis.

‘Nós’ evoca também o anticlímax e pessimismo que impregnam ‘O Massacre da Serra Elétrica’ (1974), de Tobe Hooper, e ‘Halloween’ (1978), de John Carpenter. Lá, como em tantos outros filmes de variados gêneros daquele período, o clima ruim reflete o incômodo que a Guerra do Vietnã vinha causando na sociedade americana, assim como as paranóias ligadas à Guerra Fria.

Tanto em ‘Corra!’ como em ‘Nós’, Peele parte da premissa de que a América passa, ou continua a passar, por situações que flagelam sua população. Assim como no primeiro filme, a nova produção também abriga críticas à polícia, que nunca aparece, e ao contagioso hedonismo e narcisismo brancos.

nós

Não bastasse ser mais sinistro que ‘Corra!’, ‘Nós’ ainda é muito mais enigmático. De nos deixar matutando por horas após a sessão. Talvez careça um pouco de ritmo no segundo ato, a partir do primeiro contato entre a família original e suas cópias malignas. Nada que ofusque, no entanto, a corajosa habilidade que Jordan Peele tem para denunciar com bom humor e sagacidade aspectos obscuros da sociedade em que vive.

Nós (Us) – EUA, 116 min, 2019. Dir.: Jordan Peele – Estreou em 21/3. Assista ao trailer: 

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