Carnaval em Salvador. Crime investigado por um detetive particular envolto em dramas financeiros, mulheres fatais, morando em apartamento barato e dotado de uma visão irônica dos dramas da vida. Esses ingredientes já seriam suficientes para um bom romance policial “noir”, estilo que conta com Dashiel Hammet (1894-1961) e Raymond Chandler (1888-1959) entre suas principais referências. Mas há algo mais nas ruas da capital da Bahia nas páginas de Noir Carvalesco (2020), que certamente fará moradores e visitantes nunca mais verem essa cidade da mesma forma.
ESPINOSA: UM POLICIAL, SUA CIDADE E NOSSO MUNDO NOS LIVROS DE LUIZ GARCIA-ROZA
Falar das lendas brasileiras é sempre lutar contra preconceitos e lidar com o “complexo de vira-latas” brasileiro. E é isso que o livro faz, sem cair no ufanismo barato. Entre uma e outra enrascada do detetive Bartolomeu, especializado em “investigações pajelantes”, ou seja, que envolvam seres e poderes sobrenaturais, vemos a nossa cultura, essa mesmo, que muitas vezes é tão desprezada, sendo protagonista e cenário do romance.
A profusa referência à indústria cultural brasileira é feita com muita habilidade na trama e de maneira muito natural. Salta nas páginas uma definição de cultura e como ela é consumida no Brasil da desigualdade, dos ônibus lotados, e das cidades caóticas, que se conectam a internet em lan houses precárias, entre o jeitinho brasileiro e a cordialidade que nos marcam. O folclore, sempre tão surrado e vilipendiado, aparece no livro como deve ser: inseparável do cotidiano do povo, no caso o povo soteropolitano. Isso o livro entrega bem: o folclore não deve ser entendido fora do caldeirão cultural brasileiro, ele figura com outros ingredientes, sejam as novelas ou as músicas do Baiana System ou do É o Tchan!.
E como estão nossos personagens lendários nisso tudo? Estão como nós nesta terra: informais e passionais, na luta pela sobrevivência, sambando entre o bem e o mal.
Quem nos entrega essa história é Ian Fraser, autor da bela saga Araruama (estamos esperando o terceiro volume!) e grande nome de um movimento literário que honra a fantasia brasileira com nossas cores e cultura. Como chamar essa corrente que une tantos novos autores? Fantasismo brasiliense? Ficção fantástica brasileira? Não sei, estamos vendo a coisa acontecer, esses rótulos ficam para depois.
Certamente essa abordagem do folclore brasileiro ficou mais conhecida do grande público com a série Cidade Invisível (Netflix), mas há muita produção literária de qualidade do tipo. Vale ficar de olho, os livros são sempre lançados com boas campanhas em sites de financiamento coletivo e movimentam muitos corações e mentes em nosso país.
