Sempre digo que tocar tambor, para mim, significa estar entre mulheres, porque foi dessa maneira desde a primeira vez que eu toquei um tambor na minha vida. E não por coincidência, esses são momentos de cura, amor e conexão com o meu interior e com as outras – principalmente as que vieram antes de mim e possibilitaram isso. A percussão, ainda nos dias atuais, é um lugar muito ocupado por homens, mas aquela visão de que se trata de um lugar não pertencente à mulher, vem perdendo força, porque as mulheres não estão somente ocupando esses lugares, estão fortalecendo outras mulheres através dos tambores.
“Dar o lugar que é da mulher, o lugar do tambor, que é feminino. O tambor não é masculino, o tambor é feminino!” diz Adriana Aragão, percussionista, co-fundadora do Bloco Afro Ilú Obá de Min e professora. A conexão de Adriana com a percussão vem da sua família nordestina, do samba e principalmente da religiosidade – em suas próprias palavras, ela só é artista hoje porque é filha de orixá, porque vem do religioso. Foi criada por Ogans(cargo ocupado sempre por homens no candomblé e na umbanda) que, mesmo em um lugar considerado tão masculino dentro da religião, mostraram o caminho da musicalidade dos tambores, deram todo o suporte e acolhimento para que ela percebesse o quanto era forte estar ali.
E é o que ela ensina em suas aulas: “É uma potência tão grande quando a gente começa a ensinar essas mulheres. Eu trabalho muito com a oralidade, com o corpo da pessoa, com o que a pessoa sente. Isso traz um lugar de empoderamento ancestral, não precisa tá na religião. Mas a mulher ali aciona sua ancestralidade, ela se reconecta”.
MOVER-SE PARA CUIDAR DE SI: A DANÇA ANCESTRAL COMO CAMINHO DE CURA
Girlei Miranda, percussionista, professora e co-fundadora do Bloco Afro Ilú Obá de Min, conta que não tinha a ambição de ensinar. Isso aconteceu porque muitas mulheres, ao vê-la tocar, perguntavam se ela dava aulas. Por entender que a música, o samba e a cultura popular deve ser acolhimento – acolhimento esse que ela sempre teve por parte dos pais e da família, mesmo estando, desde muito nova, no universo do samba, considerado tão masculino – ela passou a ensinar as amigas, a fim de que elas se reunissem no fim do dia, depois da aula ou do trabalho, para tocar juntas.
Ensinar outras mulheres veio da construção desses grupos que foram feitos para se divertir, mas também para romper essas barreiras machistas. E aí, a partir do momento em que as mulheres desses grupos insistem e permanecem, a mulher na percussão vai ganhando mais espaço, voz e força. “Eu sou muito realizada hoje de ter formado, de ter feito parte, de ser co-fundadora de alguns grupos; de ser mestra de algumas lindas e maravilhosas que tocam tambores, de mulheres que estão ali e dizem: ‘nossa, mudou minha vida, mudou minha casa, mudou minha família, mudou o meu olhar com meu marido, com as minhas filhas… Mudou o meu olhar através da arte, mudou o meu olhar através da vida.’ Enfim, isso tudo dentro de uma aula. Elas chegam lá e se jogam completamente, se desnudam.” diz Girlei.
A mulher tocando tambor envolve afeto, envolve cuidado e muito respeito pelas origens e por todas que resistem e resistiram nesse lugar, principalmente quando ele ainda era composto inteiramente por homens. Hoje, nós temos mestras como a Adriana Aragão e a Girlei Miranda, que tiveram em suas trajetórias homens que passaram muito conhecimento para elas. Mas como se expande e enriquece quando elas passam isso para outras mulheres.
Que grandiosidade saber que hoje já existam mais mestras e mais professoras como elas. Tem-se um caminho, talvez, longo pela frente, mas viemos alcançando e conquistando muitos espaços até os dias de hoje. A experiência de aprender esse instrumento e viver o que a percussão proporciona, é transformador. Viver isso acompanhada de mulheres é extremamente grandioso. É entender que os tambores tem história, que a música tem história, os ritmos têm história e nós temos história – que muitas vezes se cruzam. Tocar tambor é autoconhecimento, é libertador. Tocar tambor é amor.
“Se puderem, pelo menos 10, 5 minutos, ir lá e tocar um pouquinho o tambor, seria a cura para a própria pessoa e para o universo. É importante demais a mulher tocar o tambor. A gente vibra o tempo todo o nosso pulsar, o nosso querer dentro de nós. E você se cura. Palavras que são muito ruins, energias que são muito ruins, estão aí para ser assimiladas se a gente estiver de corpo aberto, sem nos proteger com o nosso próprio som, nosso próprio pulsar. Tocar um instrumento, ouvir uma boa música e sempre celebrar, é muito importante nesse momento.” Girlei Miranda.