MODA DE VIOLA E PAGODE: “BOAS NOVAS”, ÁLBUM DE ESTREIA DE ZECA VELOSO É UM PROJETO BRASILEIRO

O DISCO TRAZ PARTICIPAÇÕES ESPECIAIS DE TADEU BIJOS, SYLVIO FRAGA E XANDE DE PILARES. OUÇA
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26.11.2025

Elisa Maciel

por Thiago Amud

“Boas Novas” é um disco de autor. Poderia não ser, uma vez que a voz de Zeca Veloso, doce e afinada, passaria facilmente pelo portão largo das releituras. Mas ele escolheu entrar pelo portão estreito da autoralidade. Das dez canções gravadas no disco, sete têm letras e músicas de Zeca (‘Salvador’, ‘Talvez Menor’, ‘Desenho de Animação’, ‘Máquina do Rio’, ‘Tua Voz’, ‘A Carta’ e ‘O Sopro do Fole’) e as três outras foram escritas em parceria (‘Boas Novas’ com Tom Veloso, ‘Carolina’ com Tadeu Bijos e Sylvio Fraga, e ‘O Sal Desse Chão’ com Xande de Pilares).

Em todas encontramos traços personalíssimos, procedimentos poéticos e musicais maturados por um compositor que não teve pressa para lançar seu primeiro álbum, no qual trabalhou ao longo de pelo menos três anos. Impressiona que, apesar de ter contado com dez produtores, além de si próprio, Zeca nos dê uma obra tão coesa. Proeza de quem usou o tempo a seu favor, tornando-se parceiro do próprio rigor e se apropriando das coisas que tinha para dizer. Coisas que agora diz.

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“Boa-nova” é a tradução da palavra grega euangélion. Mas Boas Novas” é título matreiro: sem deixar de remeter aos Evangelhos, pode perfeitamente indicar uma coleção de boas canções novas – todas posteriores a ‘Todo Homem’ (2017), cujo sucesso rendeu a Zeca uma legião de fãs que passaram a ansiar por seus próximos atos criativos.

Em 2022, a presença de ‘O Sopro do Fole’ na trilha da novela Pantanal e seu lançamento em clipe deram sinais do que Zeca Veloso andava inventando. Agora que essa moda de viola encerra Boas Novas”, versos como “É o sopro que acende a máquina do Rio” e “Ô, boa-nova, notícia-clarão” se articulam com o que foi cantado nas faixas anteriores e soam ainda mais claros. Podemos aquilatá-los melhor e compreender que se referem a uma propulsão oculta no coração do Brasil, promessa acesa que vai se alastrar e dar na “festa da volta do rei”.

Na faixa anterior, ‘O Sal Desse Chão’, a festa que se preparava era em direção topograficamente oposta à de ‘O Sopro do Fole’: do mar para a terra, onde o pescador, com as redes rompidas e já sem querer jogar o anzol, vai celebrar o pagode e, assim, retemperar o chão do mundo com o sal da alegria. Abençoada pela voz de Xande de Pilares, o parceiro na melodia, e pela produção e arranjo de Pretinho da Serrinha, ‘O Sal Desse Chão’ nos remete àquele momento do show Ofertório em que Zeca interpretava ‘Tá Escrito’, sucesso do grupo Revelação composto por Xande, Gilson Bernini e Carlinhos Madureira. Prenunciava-se a parceria.

Moda de viola e pagode: este é um disco brasileiro. Nele o Brasil é atravessado por uma dimensão profética, às vezes explícita, como na canção-título, com melodia de Tom e letra de Zeca – em que os movimentos cósmicos dão sinais da “boa-nova” e todos os humanos se irmanam na grande véspera da nascença do Filho, às vezes cifrada, como em ‘Talvez Menor’ – em que a convulsão ambiental desemboca no dia do Juízo. Tanto a orquestração de Jacques Morelenbaum para a primeira quanto o violão do próprio autor na segunda criam ambiências transparentes que permitem que palavras e melodias ressoem íntimas, como se proferidas em clave angelical.  

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Outros aspectos ligados a essa cosmovisão fulguram aqui e acolá nas canções de “Boas Novas”. Por exemplo, se o andamento de valsa e o arranjo camerístico de Morelenbaum emprestam a ‘Tua Voz’ (produzida por Lucas Nunes) a dolência das canções de amor, vale observar se o que a singulariza não é o fato dela expressar o anseio por uma dimensão adâmica, anterior à Queda. Já ‘A Carta’, orquestrada por Mário Adnet, é a confissão de um criador de canções que encontra sentido no próprio ofício por nele se esvaziar, num ato auto-sacrificial de incondicional amor. E a voz de Dora Morelenbaum reluz brevemente, como se fosse a auréola da voz de Zeca.

‘Salvador’, que abre o álbum, acompanha a jornada de uma espécie de guerreiro espiritual que, sabendo-se constantemente passível de ser derrotado nas batalhas, segue íntegro no meio das vicissitudes. É forte que o compositor não cante sozinho esta canção, dividindo-a com Caetano, o pai, e com Moreno e Tom, os irmãos. Além disso, a bateria diagramada e o baixo sintetizado pilotados por Luciano Oliveira (ex-The Twelves) são turbinados pelo arranjo de metais do trombonista Marlon Sette e adensados pelos tambores de Leonardo Reis e Luizinho do Jêje. Todos “sob o céu do Salvador”, numa dialética estimulante que se estabelece entre imagens extraídas do campo semântico das cruzadas e a ambiência musical pop-afro-baiana.

Aliás, um dos trunfos de Zeca é saber conduzir diálogos amplos. Basta lermos os créditos da produção de ‘Salvador’: ele os divide com Luciano, Marlon, Kassin, Antonio Ferraz, Pepê Monnerat, Júlio Raposo, Pepê Santos e Uiliam Pimenta. Some-se a todos esses nomes o de Lucca Noacco e temos a lista de produtores de ‘Máquina do Rio’, originalmente composta como samba e tratada como pop-funk oitentista, no estilo dos arranjos de Lincoln Olivetti (o que se deve à concepção trazida por Luciano).

Na letra, um sujeito delimita certa distância em relação aos estímulos desorientadores oferecidos pela vida carioca, que bem conhece. Tematizando a relação complexa entre arrependimento e perdão, chega-se a uma transfiguração da cidade, a partir de um jogo com os nomes de seus bairros, comunidades e ruas. Noutras palavras, é firmado um pacto com o “sopro que acende a máquina do Rio”.

Salvador e Rio de Janeiro: sim, este é um disco brasileiro. Nele o Brasil também é atravessado pela dimensão reflexiva. Em ‘Desenho de Animação’ e ‘Carolina’ podemos ver a movimentação das ideias de Zeca a respeito de nossa identidade cultural. Na primeira, ele retoma, com ironia, uma questão inquietante: levamos uma vida cultural imitada, postiça? Remetendo ao pensamento crítico de Roberto Schwarz, o compositor se mostra lúcido quando identifica em sua própria formação – e na de toda sua geração – as marcas deixadas pelo imperialismo estadunidense diluído no entretenimento cotidiano.

Além disso, Zeca relativiza as pretensões de autenticidade dos que, contra a massificação, brandem as armas da alta cultura. Assim, traz à baila uma pergunta desconcertante sobre o maior escritor brasileiro: influenciado profundamente pela literatura de língua inglesa, será que Machado de Assis já não seria um copiador? (“Procuro em solo tropical/Bentinho, Brás e Rubião/(…)/Mas eram eles já o sinal?/Riqueza de reprodução”). A letra segue provocadora até o final elíptico, revelador da continuidade de nossa crise de identidade ao longo dos séculos (“Escrevo o meu refrão enfim/A dúvida dentro de mim/Tupi-guarani, mandarim?”). ‘Desenho de Animação’ tem inflexões de balada pop, e a conjugação disso com sua verve crítica é caso raro.

Tanto ‘Desenho de Animação’ (produzida por Kassin) quanto ‘Carolina’ foram belamente orquestradas por Noacco. Mas ‘Carolina’ glosa o mesmo mote em outro estilo. Onde aquela era ensaística, esta é cênica. A balada bilíngue, cuja letra foi lapidada por Bijos e Fraga, tem melodia que Zeca ouviu em um sonho que teve com John Lennon. Nela, encena-se o diálogo entre a personagem-título, que canta em inglês e não quer seguir vivendo no Brasil, e seu amado que, inicialmente em português, tenta convencê-la a ficar. A divisão em três estrofes é hábil.

Na primeira, Carolina canta sua incompatibilidade com o país e mitifica o norte do mundo; na segunda, o amado exalta a vitalidade do sul do mundo, contrapondo-a ao império do norte, coração do capitalismo; na terceira, Carolina leva seu interlocutor a confessar que também ele traz na alma as marcas da dominação cultural. Dá-se aí o turning point: ele passa a cantar em inglês e, ao invés de insistir no binômio Norte/Sul, começa a contar um sonho no qual alguém lhe revelou que um tempo de grande mudança está próximo. Zeca sustenta o desenlace enigmático, porque, como foi dito acima, em Boas Novas” o Brasil é atravessado por uma dimensão profética.

A estreia fonográfica do portador dessa “notícia-clarão” merece ser saudada com as palavras que uma vez lhe foram dirigidas e que muito bem conhecemos: “lhe damos as boas vindas, boas vindas, boas vindas”. Como colega e amigo, eu o saúdo.

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