Indicado ao Oscar, ‘Os Miseráveis’ traz intenso relato sobre violência institucional

Estreia de diretor africano, produção francesa concorre na categoria filme internacional
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17.01.2020

Diamond Films / Divulgação

Ao contrário do que o título logo sugere, este ‘Os Miseráveis’ não se trata de outra adaptação do livro escrito por Victor Hugo no século 19. O que não significa que foi assim batizado sem qualquer razão. De fato, a essência da obra de Hugo permeia todo seu enredo, que inclui, até mesmo, algumas citações diretas ao texto.

Em seu primeiro longa-metragem, Ladj Ly, diretor e corroteirista nascido no Mali, apoia-se nessa fonte para retratar realidades da periferia de Paris que ele mesmo vivenciou em sua juventude. Se no livro as ruas da capital francesa são tomadas pelas revoltas populares dos anos 1830, aqui as ações começam com a Champs-Élysées, avenida mais famosa de Paris, em polvorosa pela conquista da Copa de 2018. Assim como no evento do século 19, mais uma vez todos os estratos sociais estão unidos por um mesmo sentimento. Neste caso, a alegria pelo título mundial de futebol.

Entre esses, temos o primeiro contato com o adolescente Issa (Issa Perica, em seu primeiro filme) e seus amigos. Filhos de imigrantes africanos, torcem especialmente por Mbappé. Sentem-se representados pelo jovem craque da seleção francesa, filho de pai camaronês e mãe argelina. Comemoram envoltos por bandeiras da França. E aí está a força da cena: mostrar que, apesar de viverem à margem social e econômica da região, são cidadãos tão franceses quanto qualquer membro da elite do país, a ponto de saírem de seus afastados bairros para juntarem-se às comemorações no centro.

Já na manhã seguinte, acompanhamos o trio de policiais que patrulham esses bairros. Um deles, Stéphanie (Damien Bonnard) acaba de ser transferido do interior, e se revelará o mais sensato do grupo. Gwada (Djibril Zonga) provém desses mesmos guetos, e é o mais ponderado do trio. Enquanto Chris (Alexis Manenti, também corroteirista) é o canalha, o tipo de policial repugnante, que usa de sua autoridade para oprimir conforme suas próprias regras. E se há algo a se criticar até aqui, é a forma direta com que essas características são reforçadas. Desde o primeiro momento, Ladj Ly nos dá a certeza de que tipo de pessoa é Chris, sem espaço para dúvidas ou nuances no caráter do personagem.

Ao longo deste longo dia, que ocupa a quase totalidade do filme, o caminho dos policiais cruza com o de Issa. Os mais familiarizados com a obra de Hugo logo o identificarão como espelho de Gavroche, o menino de rua que é fatalmente baleado durante os conflitos de 1832. Não é spoiler. Aqui, a execução de Issa é simbólica, embora igualmente revoltante, e se constituirá no fator-chave para o desenrolar das ações seguintes.

Ly trabalha a relação entre os policiais e os habitantes do bairro aumentando, pouco a pouco, a tensão entre eles. Os conflitos vão se acentuando até chegar à faísca derradeira, que se converterá no clímax da história. Para isso, o roteiro usa habilmente um velho recurso, que Hitchcock chamava “mcguffin”, um objeto que é alvo da busca dos protagonistas, servindo especialmente para movimentar as ações. Um duplo “mcguffin”, por sinal.

critica os miseráveis

Primeiro, o filhote de leão sequestrado, cuja procura é importante para nos apresentar todos os grupos envolvidos. Depois, a procura é pelo drone que contém evidências de abuso policial. Aliás, o plano subjetivo, lá do alto, mostrando o registro de sua câmera, remete à ideia do olhar divino, do qual nada escapa, sobretudo pela gravação ter sido feita por uma criança – representação clássica da figura de um inocente -, por quem a justiça divina, ainda que feita por mãos humanas, idealmente nunca deve faltar.

Com ritmo crescente, e uma trama sempre em movimento, Ly nos entrega um intenso relato das disparidades sociais que, mesmo dois séculos após as revoltas narradas no livro de Victor Hugo, continuam a ditar as relações entre as diferentes camadas da sociedade, particularmente entre estas e o Estado (aqui representado pelos policiais). Tal qual o relato de Hugo, Ly também aponta a revolta, e consequente rebelião, como reações inevitáveis a esse tipo de tratamento. Somos todos miseráveis.

Os Miseráveis (Les Misérables – França, 102 min, 2019. Dir.: Ladj Ly – Estreou em 16/01. Assista ao trailer:

O Portal Pepper dedica a cobertura do Oscar 2020 à memória de Rubens Ewald Filho (1945-2019), pioneiro da crítica cinematográfica no Brasil, e referência absoluta sobre história e bastidores da premiação mais tradicional da 7ª Arte.

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