As alegorias e as potentes vírgulas – do escritor José Saramago (1922-2010) encontram a infinitude cênica e poética do Grupo Galpão. “(Um) Ensaio sobre a Cegueira”, o mais recente espetáculo da companhia mineira, é inspirado no romance do autor português, vencedor, em 1998, do Prêmio Nobel de Literatura, com direção e dramaturgia de Rodrigo Portella, e direção musical de Federico Puppi.
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Na clássica obra, lançada há exatos 30 anos, uma epidemia assola a cidade, privando seus habitantes de enxergar o mundo. Em tal contexto, questões ligadas à moral, à ética e à vida em comunidade são postas em xeque. A temporada da peça na capital paulista será de 20 de novembro a 14 de dezembro, no Sesc 24 de Maio. Além da estreia, o Grupo Galpão fará apresentações no Sesc Santo André de 6 a 16 de novembro.
Em “(Um) Ensaio sobre a Cegueira”, adaptação do romance de José Saramago escrita e dirigida por Rodrigo Portella, o Grupo Galpão propõe uma experiência em que a imaginação do público assume papel central. No espaço cênico despojado, sem cenário ou artifícios, os próprios atores manipulam objetos, luz e som, e constroem diante da plateia as imagens e situações da narrativa. A encenação aposta na teatralidade explícita e na sugestão em lugar da representação literal, convidando o espectador a completar o que não se mostra. Em determinados momentos, o público é integrado à ação: pessoas são vendadas e inseridas na cena como novos grupos de cegos que chegam ao manicômio, o que modifica a relação entre quem assiste e o que é encenado, aproximando ficção e realidade.

O espetáculo também conta com o “Ingresso Experiência”, categoria na qual o público poderá vivenciar a peça nesta experiência imersiva e sensorial no palco citada acima, guiada pelo elenco. Pessoas maiores de 18 anos poderão participar, aceitando as condições informadas. A compra do ingresso experiência será online, individual (única e intransferível).
Contada por meio da prosa ensaística de Saramago, a história sobre a “cegueira branca” que se espalha em diversas partes do mundo não é apenas uma meditação sobre a perda e a fragilidade humanas, mas, também, uma potente alegoria acerca dos frágeis limites éticos que nos separam da barbárie. “A obra revela o modo como, em um mundo despojado das aparências, enxergamos, realmente, quem somos e o que, em essência, significa ser humano”, destaca Rodrigo Portella, para quem a narrativa do grande escritor português se revela repleta de paralelismos:“A cegueira pode ser uma metáfora da perda de sentido e do senso de humanidade, assim como de nossa capacidade de enxergar além do que se vê”.
Ator e um dos fundadores do Galpão, Eduardo Moreira ressalta que a parceria com Rodrigo Portella e o projeto de adaptação do romance “Ensaio sobre a Cegueira” representam mais um importante capítulo da trajetória de experimentação e teatro de pesquisa do Grupo. “Em 43 anos de atividade contínua, sempre pautamos nossa prática pela busca de novas e desafiadoras experiências, que nos fizessem refletir sobre a natureza do teatro e de como ampliar e diversificar nossos conhecimentos e perspectivas”, comenta.
Segundo Eduardo, o teatro do Galpão está sempre em construção. “Nós nos colocamos como aprendizes, nessa perspectiva, num processo profundamente libertador, que revela nossos limites, ao mesmo tempo em que nos convida a viver novas experiências de risco e experimentação, não só entre nós, mas, também, na comunhão com o público, que sempre foi e continua sendo parte essencial do nosso trabalho”.
A questão central de todo o processo de trabalho ligado a “(Um) Ensaio sobre a Cegueira”está na elaboração de um ator formulador, que constrói permanente dialética entre narrativa e drama, a partir da obra de Saramago. “A natureza de ensaio, de algo construído no calor do aqui e do agora, na busca por um frescor permanente do acontecimento teatral, foi o impulso primordial da adaptação proposta por Rodrigo Portella, ao abordar a fábula da distopia de um mundo dominado pela metáfora de uma ‘cegueira branca’”.
Também para Eduardo, a ideia de um mundo em que “não cegamos”, mas onde “estamos cegos” – “cegos que veem”, “cegos que, vendo, não veem” – garante a exata dimensão da extraordinária atualidade da obra de Saramago e de sua capacidade de dialogar com as grandes questões e mazelas do nosso tempo. “É um convite para que possamos fechar os olhos e, finalmente, ver”.

Na opinião de Rodrigo Portella, em Saramago, vê -se de algo como o ofuscamento do saber ou a representação da ignorância, da curiosidade e do interesse genuíno no coletivo. “Para mim, a obra é a alegoria, quase satírica, de uma sociedade mergulhada numa espécie de produtivismo capitalista que o próprio Saramago chama de mal branco. Não é sobre não poder ver, como uma deficiência visual, é sobre não enxergar o que se vê”, analisa. “Estamos cegos diante de tanta imagem, perdemos a capacidade de ler o mundo em camadas mais complexas. Quando vou a um museu muito turístico, constato uma cegueira geral. Poucas pessoas veem, de fato, as obras. A maioria, ao contrário, não as enxerga, pois perdeu a capacidade de ler, observar e reter. Elas estão distraídas com suas selfies ‘instagramáveis’, perdidas numa espécie de automatismo”, completa.
Saramago escreve: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”. Para o diretor da peça, o verbo “reparar” pode, aqui, tanto significar a possibilidade de acessar as camadas mais profundas da visão: “Talvez, Saramago esteja propondo uma epidemia de cegueira como forma de nos proporcionar algum aprendizado. Passar por toda a privação da autonomia, de serviços básicos, ter que lutar pelo alimento, experimentar o medo irracional, o horror da banalidade do mal, para, enfim, dar-se conta da necessidade de reparar, mudar, ajustar o sistema, retornar ao essencial; como se toda a jornada na escuridão fosse um caminho de evolução em relação à consciência e à necessidade de reafirmação e reiteração do pacto civilizatório”.
No que diz respeito ao processo de trabalho de “(Um) Ensaio sobre a Cegueira”, Fernanda Vianna, atriz do grupo, destaca a “cegueira branca” de Saramago como uma “cegueira moral da indiferença, do egoísmo, da tirania e da covardia, de nossa impotência diante das guerras, dos que têm fome. É uma oportunidade ímpar poder falar sobre isso neste momento”.
A direção musical do espetáculo é do violoncelista, produtor e compositor musical, Federico Puppi, parceiro de Portella em outros trabalhos. Para ele, trabalhar com o Grupo Galpão é como compor “para um instrumento com timbre próprio — cheio de história, personalidade e alma”, afinal: “Cada ator, cada gesto, carrega uma sonoridade única, como se o grupo inteiro vibrasse em harmonia. Criar música para o Galpão é dialogar com essa memória viva, ouvindo o que a cena pede e respondendo com afeto e escuta. Não é apenas música: é ressonância. É esculpir a sonoridade da cena a partir da riqueza evocativa que o grupo propõe, somando a minha identidade”.
Certa liberdade e uma espécie de diálogo entre autor e leitor – que também encontra espaço aberto a seus comentários – são características latentes dos ensaios. No contexto do romance, a ideia de um ensaio aproxima a ficção do mundo real, uma vez que o autor é, de fato, um autor, e se coloca como tal na obra. No romance “Ensaio sobre a Cegueira”, tudo isso é evidente. Afinal, Saramago parece atravessar, com fluidez, o limite entre realidade e ficção: “Sou um ensaísta, sou alguém que escreve ensaios com personagens”, destacava o próprio escritor.
Ao partir de tal premissa, o Grupo Galpão buscou expandir o conceito de ensaio à montagem, acrescentando, à obra teatral, outras camadas, para além da ficção. Trata-se do próprio ato da representação, da possibilidade de assumir, na cena, um espaço de construção da própria cena, além de um espaço pessoal de percepção e conversa com a obra, com suas alegorias e seus paralelismos. Neste sentido, o distanciamento da fábula põe o ator num lugar de jogo, que não se restringe à representação do papel.
O desafio é atuar nas duas camadas, sem que elas estejam apartadas uma da outra. A ideia é fundi-las, ao criar um fluxo de atuação semelhante ao que Saramago usa em sua prosa, na qual o limite entre narrativa e diálogo é sutilmente esfumaçado: quem fala, agora, o performer ou a personagem?
Assim como no ensaio de Saramago, no qual não há intermediários, na peça, não há personagens intermediando a relação entre ator e espectador. O próprio ator fala e joga com as personagens do livro. Isso nos afasta de uma representação literal da ficção criada pelo escritor português, ao abrir espaços de interlocução entre os artistas brasileiros do século XXI e as questões por ele propostas no livro. Nesse sentido, os atores não estão submetidos às personagens e suas motivações. Ao contrário: as personagens estão a serviço do jogo e das motivações dos atores, do dramaturgo e diretor.
SERVIÇO
Espetáculo “(Um) Ensaio Sobre a Cegueira”
Onde: Sesc 24 de Maio
Endereço: Rua 24 de Maio, 109, República – São Paulo
Quando: 20 de novembro a 14 de dezembro
Horário: quinta à sábado às 19h – domingo às 18h
Quanto: R$ 70 (inteira) R$ 35 (meia)
Classificação etária: 16 anos
Duração: 140 minutos
Informações: através do site


