Revelada há algumas semanas pela Academia Brasileira de Cinema, a lista de indicados ao Grande Prêmio do Cinema Brasileiro deste ano, que acontece em agosto no Rio de Janeiro, traz um misto de decepções e alegrias. Por um lado, a entidade segue cada vez mais dando voz a gêneros, grupos e etnias diversas. Por exemplo: Personagem-título em ‘Paloma’, Kika Sena é a primeira mulher transgênero indicada ao Grande Otelo de melhor atriz. A visibilidade trans também está presente na temática de ‘A Menina Atrás do Espelho’, de Iuri Moreno, indicado ao prêmio de melhor animação em curta-metragem.
“MEDIDA PROVISÓRIA” LIDERA INDICAÇÕES AO GP DO CINEMA BRASILEIRO 2023 – CONFIRA OS FINALISTAS
Por sinal, os curtas compõem as categorias mais inclusivas: dos 16 concorrentes, oito são dirigidos por mulheres; o indígena Takumã Kuikuro é o diretor de ‘Território Pequi’, curta documental sobre a comunidade da aldeia Ipatse Kuikuro; entre as animações no formato, ‘Meu Nome é Maalum’, de Luísa Copetti, e ‘O Senhor do Trem’, de Aída Queiroz e Cesar Coelho, trazem histórias afirmativas a respeito da cultura e tradição do povo preto no Brasil; ‘Big Bang’ e ‘Sobre Amizades e Bicicletas’, dois dos curtas ficcionais na disputa, combatem o capacitismo, sendo o primeiro protagonizado por Giovanni Venturini, ator com nanismo, e o segundo por Bernardo Maestrelli e Natalia Flora de Souza Rosa, atores-mirins com dificuldade de locomoção e deficiência visual, respectivamente.
Seis dos dez indicados aos prêmios de melhor ator e melhor ator coadjuvante são pretos: Alfred Enoch (‘Medida Provisória’), Antônio Pitanga (‘Casa de Antiguidades’) e Carlos Francisco (‘Marte Um’) entre os protagonistas; Cícero Lucas (‘Marte Um’), Emicida (‘Medida Provisória’) e Flávio Bauraqui (‘Medida Provisória’) entre os coadjuvantes; Etarismo nunca teve vez na premiação, como reafirmam as indicações de Helena Ignez, aos 81 anos, como atriz coadjuvante em ‘A Mãe’, e Antônio Pitanga, 84, protagonista de ‘Casa de Antiguidades’.
Dentre os concorrentes nas categorias de melhor direção e melhor primeira direção, temos três mulheres – Carolina Markowicz (‘Carvão’), Laís Bodanzky (‘A Viagem de Pedro’), Rosane Svartman (‘Pluft, O Fantasminha’) – e dois pretos: Gabriel Martins (‘Marte Um’) e Lázaro Ramos (‘Medida Provisória). Mas apesar de tantos avanços, por outro lado nossa Academia parece concentrar a maior parte das indicações num leque cada vez mais reduzido de concorrentes, o que, além de contraditório, é preocupante, especialmente do ponto de vista mercadológico.
Cinema é arte, mas também indústria. Não é de hoje que festivais e premiações fazem mais do que celebrar a existência e resistência do setor, cumprindo um papel comercial relevante como vitrine de seus produtos – isto é, fundamentalmente seus filmes. Estar entre os selecionados e indicados a esses eventos rendem preciosa mídia espontânea durante os meses que se passam entre anúncios e entrega das honrarias. Por isso não faz sentido celebrar a pluralidade de produções inscritas no GP deste ano (foram 96 longas de ficção e 35 documentários) quando a maior parte das indicações se concentra em meia dúzia de títulos. Eis os mais indicados:
‘Medida Provisória’, de Lázaro Ramos – 15 indicações em 14 categorias
‘Marte Um’, de Gabriel Martins – 13 indicações
‘Eduardo e Mônica’, de René Sampaio – 11 indicações
‘A Viagem de Pedro’, de Laís Bodanzky – 10 indicações
‘O Clube dos Anjos’, de Angelo Defanti – 9 indicações em 8 categorias
‘Paloma’, de Marcelo Gomes – 8 indicações.
Juntas, essas seis obras, das quais apenas ‘O Clube dos Anjos’ não está indicada a melhor filme, preenchem 65 das 90 indicações destinadas de forma irrestrita aos longas de ficção desta edição do GP – ou seja, considerando 17 categorias e excetuando as quatro voltadas a um único gênero ou formato (animação, comédia, documentário e filme infantil). Em termos percentuais, isso equivale a mais de 70% das vagas. E poderia ser pior, já que em cinco dessas categorias há seis indicados, em vez dos tradicionais cinco concorrentes.
E o que pode ser feito para que isso não se torne a tônica da premiação? Parte de uma possível solução já vem sendo buscada pela Academia. Após muito tempo estabilizado em torno de 200, o número de associados subiu para mais de 300 nos últimos três anos (a lista completa pode ser acessada aqui), período em que a entidade incentivou novas adesões, criando até mesmo uma nova classe de associado, o “sócio técnico”, com valor de anuidade reduzido e dedicada aos profissionais de áreas técnicas como direção de arte e de fotografia, montagem, figurino, maquiagem e sonoplastia.
Porém, para votar nas categorias de melhor filme (animação, comédia, ficção, documentário e infantil), direção, atuações e roteiros, esses profissionais devem ser “sócios acadêmicos plenos”, portanto pagando a anuidade total, que até 2021 girava em torno de R$ 800 – atualmente a Academia não divulga mais os valores antes do pedido formal de inscrição. Isso significa que mais da metade das categorias ainda está restrita ao grupo de sócios acadêmicos plenos, o que ajuda a explicar a contradição de se ver crescimento no número total de associados, e ainda assim a variedade de títulos indicados minguar. Ou seja, para mudar o cenário é preciso mais.
Uma vez estourada a bolha dos sócios plenos e do eixo Rio-SP, outra medida interessante seria ampliar oficialmente o número de indicados por categoria, mantendo ao menos seis por quesito, como já aconteceu antes e a exemplo do que já ocorre em algumas categorias da premiação da academia britânica (Bafta). Fosse assim já neste ano, talvez o instigante ‘O Clube dos Anjos’ e o ótimo ‘Carvão’ estariam entre os postulantes a melhor filme de ficção; ‘A Mesma Parte de um Homem’, de Ana Johann, e ‘Fortaleza Hotel’, de Armando Praça, interessantíssimos, beliscariam uma ou outra indicação; Glória Pires (‘A Suspeita’) e Tony Ramos (‘45 do Segundo Tempo’), em pleno domínio do ofício, seriam considerados para os prêmios de melhor atriz e ator; não se estranharia a ausência de ‘Predestinado’ em certas categorias técnicas; inscrito entre os curtas de animação, ‘Cadê Heleny?’, de Esther Vital, poderia estar também entre os curtas documentais, só não poderia ficar de fora, como foi o caso.
Em suma, o Grande Prêmio do Cinema Brasileiro 2023 farta-se em representatividade, o que é desejável e maravilhoso, mas falta variedade, o que é preocupante. Há muito a se comemorar – fato incontestável – no entanto, para o bem de nosso mercado cinematográfico, os pontos negativos não devem ser negligenciados.
22° Grande Prêmio do Cinema Brasileiro - Rio de Janeiro (RJ). Quarta, 23/8, 21h (ao vivo pelo Canal Brasil e YouTube da Academia Brasileira de Cinema)