FAVORITO AO OSCAR, ‘NOMADLAND’ BRILHA AO REVISITAR FRONTEIRA ENTRE DOCUMENTÁRIO E FICÇÃO

DISPUTANDO 6 CATEGORIAS, FILME DEVE TORNAR CHLOÉ ZHAO SEGUNDA MULHER A VENCER OSCAR DE MELHOR DIREÇÃO
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17.04.2021

Divulgação / Reprodução

“Lar é só uma palavra? Ou algo que carrega em você?”. O trecho da canção de Morrissey, fundador do grupo britânico The Smiths nos anos 80, é citado nos primeiros minutos de ‘Nomadland’ e nos dá a primeira chave para a compreensão desta sensível e inspirada obra de Chloé Zhao, chinesa radicada nos EUA, que em poucos dias deve se tornar a segunda mulher a vencer o Oscar de melhor direção, e também a primeira asiática a conquistá-lo – o feito se dará onze anos após a vitória de Kathryn Bigelow, por ‘Guerra ao Terror’.

Partindo da virada de 2011 para 2012, o filme acompanha a trajetória de Fern (Frances McDormand), forçada a deixar sua cidade após o fechamento da única grande empresa do local, vítima tardia da grave crise financeira que acometeu os EUA em 2008, após o estouro da bolha imobiliária. Viúva recente, ela passa a percorrer as cidades da região em busca de emprego, vivendo em sua van.

FRANCES McDORMAND E CHLÓE ZHAO

Nessas andanças, conhece um grupo de “nômades modernos”, incentivados e orientados por Bob Wells, espécie de precursor e guru do movimento, que deixa claro em seus discursos não se tratar apenas de um estilo de vida, mas de uma atitude de protesto, nas palavras dele, contra “a tirania do dólar e a tirania do mercado” – que os levou em primeiro lugar à essa vivência itinerante. Eis a segunda chave para adentrarmos a obra de Zhao. Temos então, de um lado, a busca de Fern por um lar, que a essa altura sabemos não se tratar de algo físico (“não sou sem-teto, sou apenas ‘sem-casa’”, ela diz), e de outro, a declarada crítica ao modelo socioeconômico vigente.

Ganha especial relevo saber que Wells e os demais adeptos do nomadismo vistos no filme – com exceção de Dave (David Strathairn) – interpretam a si mesmos. Zhao adapta o livro homônimo que inspira o filme, escrito pela jornalista Jessica Bruder, compondo o elenco com os próprios entrevistados da obra literária. A habilidade com que o faz justifica seu amplo favoritismo ao Oscar. Embora, para fins dramatúrgicos, se detectem sutis modificações nos depoimentos desses personagens reais, a essência dos atos praticados em cena é autêntica. Fern é a personagem que os une na mesma trama, harmonizando o elo entre documentário e ficção a ponto de mal distinguirmos entre um e outro. O fato desses nômades desconhecerem estar contracenando com uma das maiores atrizes das últimas três décadas contribui para essa autenticidade. McDormand, por sinal, está indicada pela sexta vez a um Oscar de atuação, onde busca sua terceira estatueta.

Assim, ‘Nomadland’ revisita uma fronteira conhecida e alvo de frequente debate: os limites entre documentário e ficção no cinema. Especialmente a partir de ‘Nanook, O Esquimó’ (1922), de Robert Flaherty, a discussão é acirrada. ‘Iracema – Uma Transa Amazônica’ (1975), de Jorge Bodanzky e Orlando Senna, e ‘Era o Hotel Cambridge’ (2016), de Eliane Caffé, são algumas das inúmeras contribuições brasileiras para a questão. O fato é que Zhao explora esse território com destreza. Seja qual for o gênero ou formato predominante, prevalece – isso, sim, o principal – grande senso estético em favor da narrativa.

O clima tem papel importante nessa construção visual. A gélida paisagem da cidade falida que se apresenta no início marca a estagnação não só do lugar, como das condições emocionais de Fern. Não foi a falta de emprego e moradia que a fez de fato “sem-lar” (para usar a tradução literal de “homeless”, mais apropriada aqui), e sim a perda precoce do esposo. Era ele o lar (já inexistente, frio) de que Fern tem dificuldade para se desvencilhar. O sol surge em cena exatamente quando ela conhece Wells e sua turma, sinalizando uma esperança renascente. O calor humano reaquece seu coração, e a vemos rir genuinamente pela primeira vez.

Em brilhante trabalho de Joshua James Richards, diretor de fotografia também favorito ao Oscar, os mais atentos notarão o astro-rei sempre próximo ao horizonte, quase sempre à vista, como a reforçar essa nova luz na vida de Fern (veja o teaser a seguir). Nunca fica evidente, porém, se está nascendo ou se pondo. A protagonista ainda está decidindo o que esse sol afinal representa: se crepúsculo anunciando tempos sombrios ou aurora de novos e radiantes dias. O que fica nítido é o clima nublado ou chuvoso marcando as cenas em que Fern deixa de estar à vontade, como na visita à família de Dave.

Percebemos mais dessa simbologia ao vermos Fern montando um quebra-cabeça e também quando se perde entre as rochas labirínticas de um dos parques onde trabalha ao longo do filme, reforçando a intenção de se reorganizar e sua busca ainda às cegas por novos rumos. Há ainda o momento em que se banha em piscina natural, como um ritual de purificação e merecida redenção, e também o contato com a impressionante sequóia tombada, de duplo significado: nem mesmo a maior e mais longeva árvore do planeta mantém suas raízes no mesmo lugar para sempre (Fern precisa deixar o passado para trás), assim como a ideia de que gigantes também caem, remetendo à crise econômica de onde parte o roteiro. Nesse sentido, é emblemático que a cidade de onde Fern sai, que realmente existe e hoje é considerada fantasma, se chame Empire (império).

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Desta forma, ‘Nomadland’ se constitui um ousado e bem-sucedido projeto ao contemplar um habilidoso uso da linguagem narrativa, atrelado à relevância de seu conteúdo como fonte de reflexão sobre o panorama socioeconômico da nação que ainda dita os rumos do mundo ocidental. O feito já rendeu à obra mais de 200 prêmios ao redor do globo, aos quais devem se juntar merecidas estatuetas da Academia no próximo dia 25, incluindo a de melhor filme.

Nomadland (Nomadland) – EUA/Alemanha, 107 min, 2020. Dir.: Chloé Zhao – Estreia em 29/4. Assista ao trailer:

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