Esse texto é de um luto. De um luto vivido enquanto as palavras saem. Hoje eu perdi minha madrinha.
Com o tempo e as minhas investigações sobre o pós-vida, fui me tornando o tipo de pessoa que sofre pela saudade, mas que, em algum lugar, se regozija por aquele ser ter cumprido mais uma etapa de sua caminhada. De ter voltado à pátria mãe melhorado, com novas histórias e aprendizados. Você deve pensar que romantizei a morte. De maneira alguma. Apenas tenho um olhar resultante de vivências e estudos sobre a tão temida morte.
Mas, dito isso, estou a pensar na minha madrinha e sua história de vida. Em tantas coisas que vivemos, em tantos ensinamentos que ela me dava principalmente quando eu era criança. Foram inúmeras as vezes que passei férias na casa dela, festas, e nossos encontros familiares.
Foram inúmeros abraços, beijos, conversas e reflexões, de uma mulher que mesmo com tantos problemas me recebia de braços abertos. Como eu sou… Sem triar nem por nada.
Mamãe contou que quando eu nasci foi ela e meu tio que a ajudaram muito. Inclusive meu tio, que também já faleceu, foi quem ajudou no parto para que eu nascesse. E desde então ela passou de tia a madrinha. Cargo tão lindo e cheio de responsabilidades com a criança. Eu me apavoro de pensar nas minhas responsabilidades visto que sou padrinho de três.
Ao meu ver, Madrinha era uma mulher segura, discreta, de poucas expressões sobre quem ela era, o que ela gostava e sobre a vida. Nas nossas conversas ela mais perguntava que respondia. Teve três filhas e netos. Madrinha hoje se vai… A pandemia tem uma maneira de piorar as coisas. Eu não conseguirei dar o último beijo de despedida. O isolamento tem dessas coisas. Talvez seja por isso que tenha resolvido escrever sobre ela e esse assunto. É o meu até logo…
A pergunta título desse texto volta à cena. Quando alguém que amamos se vai, o que nos resta? Além das memorias e recordações em fotos, o que de legado alguém que se vai nos deixa?
Posso responder por mim, caro leitor, não por vocês. Além de tudo o que escrevi, talvez o maior legado que alguém nos deixa foi o ensinamento que ela te deu, qualquer um. Qualquer gesto, palavra, ato que você tenha aprendido com ela, é, de certa maneira, uma forma de deixar ela viva.
Honrar a vida que aquela pessoa teve se dá através disso. No meu caso, eu lembro que na casa da madrinha as pessoas tinham que dormir de pijama, todo mundo. Não podia dormir de roupa ou cueca. E tem dias que eu quero dormir de pijama por conta dela. Lá tinha horário para ver televisão e jogar videogame. Aprendi com ela que tudo tem seu tempo de ser e aproveitar, e temos que dividir esse tempo.
Ali na casa dela que eu descobri que Papai Noel não existe, por que minha bicicleta que eu queria tanto estava escondida na casa dela. Ali tive noções de verdades humanas. Eu via uma mulher dedicada que amava e defendia os filhos com unhas e dentes. Mesmo quando um deles quase destruiu esse amor dela, entre outras coisas. E ela sempre falava dele com carinho, com aquela esperança de mãe que acredita fielmente que o filho um dia melhorará das mazelas que se colocou. Esperança essa que eu levo para minha vida Madrinha, em vários setores. Eu não sei se a senhora chegou a vivenciar o fim do seu objetivo esperançoso, mas ele me ensinou muito. Aliás, toda mãe é um poço de sabedoria, basta saber onde buscar a água.
Durante um bom tempo o almoço, café e jantar tinham que ser na mesa. Todo mundo na mesa! As conversas e alimentos tinham que ser apreciados em conjunto. O tempo tratou de mudar um pouco a dinâmica quando a casa ficou mais quieta e só sobraram os dois. Ela e meu padrinho.
Ela era da área da educação. E eu lembro que quando eu estudava numa escola que ela e minha outra madrinha davam aula, as duas se prontificaram a comprar todos os dias pão com algum recheio e um suco para que eu pudesse ter o que comer, já que eu não tinha condições de ter o que levar para comer. Ela olhou por mim, vigiava minha presença como uma mãe protetora.
Ela parecia ser brava. Decidida. Daquele tipo de gente que quando fala todo mundo fica em silêncio e escuta e obedece. E nesse emaranhado complexo chamado ser humano, ela me tocou, incentivou, modificou e deixou comigo muitas das atitudes que eu tenho hoje.
Estranhamente, enquanto escrevo esse texto, da janela do meu quarto vem o cheiro da “dama-da-noite”, daquela árvore que solta um cheiro doce. Cheiro preferido de minha avó. Não se sente esse cheiro por aqui. E como acredito que não existe acaso, talvez seja vovó avisando que veio ajudar na passagem dela.
E por falar em passagem, que a sua seja regada a amor e carinho, com os nossos choros de dor pela falta que a senhora irá fazer. Mas ao mesmo tempo com felicidade de poder ter convivido com o seu ser, em sua totalidade. Com seus erros e acertos, suas qualidades e defeitos.
Que a senhora esteja tranquila quanto ao seu legado. Todos aqueles que a senhora tocou foram modificados de alguma forma. E isso por si só já é uma dádiva. Às vezes me pergunto se terei a mesma sorte, de lembrarem de mim como me lembrarei de ti.
E acabo de perceber que é na morte que entendemos muito do que é a vida. Um eterno tocar o outro, um eterno doar para quem tem o dom de eterno aprendiz. Os corpos se vão, os sentimentos se brandam com o tempo, mas os ensinamentos e ideias que alguém que partiu nos deu são eternos. E eternos, pois ela recebeu de alguém que recebeu de outro alguém, e nós passaremos para outro alguém. Assim, são todos os legados de todos os nossos antepassados. E mantemos viva a chama do conhecimento.
Boa passagem madrinha. Obrigado por tudo! E obrigado pela oportunidade. Eu te amo!