por Leonardo Lichote
Martinho da Vila lembra pouco do que aprendeu no curso de auxiliar de química industrial que fez no Senai na adolescência. Mas o que sobreviveu em sua memória — como tudo que se planta na cabeça de um poeta — virou poesia. É dessa época que ele resgata a ideia de “mistura homogênea”, termo que batiza o disco que lança agora, aos 84 anos. E que, o próprio Martinho afirma, é provável que seja seu último no formato — ele pretende continuar gravando, mas lançando apenas singles, canções isoladas.
MARTINHO DA VILA E TERESA CRISTINA LANÇAM SAMBA CONTAGIANTE DE “UNIDOS E MISTURADOS”
Na química, “mistura homogênea” é uma mistura na qual não se consegue perceber diferença entre as substâncias que a compõem — água com açúcar, por exemplo. Nas mãos de Martinho, “Mistura Homogênea” (Sony Music) é um encontro sem fronteiras definidas entre poesia e música, entre rap e partido alto, entre brancos e negros, entre samba rural e samba-enredo, entre reza e festa. Para atestar, há um time de participações especiais que vão de Zeca Pagodinho ao rabino Nilton Bonder, de Djonga a Hamilton de Hollanda, além de filhos e netos do compositor.
Mais do que um caminho estético, a proposta é a afirmação de um princípio para Martinho: “A mistura é a solução”, crava sem pestanejar o compositor. “Na minha família, os Ferreira, tem umbandista, candomblecista, evangélico, católico. A gente se reúne todo ano. Cada um leva uma comida, a gente bebe, come, canta, reza. Todo mundo junto. Manda um cântico protestante depois da umbanda, é assim que tem que ser”.
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Essa certeza baseou “Unidos e Misturados”, canção que abre o disco e que serviu de estopim para Martinho idealizá-lo. Com participação de Teresa Cristina, a música lançada como single em 2021 é uma ode à força da união em nome do bem. Com tempero do ponteio rural do cavaquinho (herança da Duas Barras, cidade natal de Martinho, no interior do Rio de Janeiro), a dupla propõe juntar os bons pra fazer um roçado. Pra quê? Cortar as ervas daninhas, “tais como as quais que estão lá no cerrado” — referência malandra à turma que ocupa o Palácio do Planalto hoje.
Da roça para o partido alto. “Vocabulário de um Partideiro” (assista abaixo) brinca com palavras que raramente são ouvidas numa roda de partido alto – formato de samba originalmente improvisado. A lista começa com “desembargar” e termina com “Guandu”, passando antes por outras como “parangolés”, “kiwis” e “brocoió”. Zeca Pagodinho e Xande de Pilares são os reforços da faixa, que ganhou um arranjo de pegada pop assinado por Rildo Hora.
Rildo é um dos muitos responsáveis pela sonoridade do disco. Além dele, o time de arranjadores inclui Rafael dos Anjos, Bruno Carvalho, Julio Alecrim e Maíra Freitas. Ou seja, a mistura proposta por Martinho foi fundo. A ideia de trabalhar com vários arranjadores de gerações e estilos diferentes veio de conversas do compositor com os produtores do disco, Celso Filho e Martinho Antônio – Preto Ferreira completa o time da produção como assistente.
O álbum segue com “Sim Senhora”, que Martinho musicou a partir de um poema de Geraldo Carneiro. Nela, a mistura homogênea do disco inclui lirismo e humor (“Aqui em casa eu mando em tudo/ Revelo a verdade agora/ Tenho a última palavra/ E declaro: ‘Sim, senhora’”, diverte-se Martinho ao lado de Tunico da Vila, seu convidado na faixa). “Canção de Ninar”, que vem em seguida, também nasce de um poema, este de Salgado Maranhão – um dos preferidos de Martinho. Na cadência inconfundível do cantor (“Devagar, bem devagar”, diz um dos versos), se desenha um samba de amor curto e delicado.
MARTINHO DA VILA DIVULGA LIRYC VIDEO DE “VIDAS NEGRAS IMPORTAM”
A poesia é elemento fundamental na química do álbum, como reforça “Dois Amores”, que reúne Martinho, Hamilton de Holanda e a escritora moçambicana Paulina Chiziane. Sobre o bandolim de Hamilton, o compositor declama e canta uma louvação a seus dois amores: a música e a poesia. No fim, é Paulina (vencedora do Prêmio Camões em 2021 e fã de Martinho) quem declama versos seus feitos especialmente para o disco.
“Zuela de Oxum” é parceria com Moacyr Luz, que lançou a canção em 2003. Agora Martinho dá sua leitura a ela, saudando orixás sobre o arranjo que une agogô, acordeon e trombone. Depois do “saravá”, a faixa “Oração Alegre” propõe um alegre encontro ecumênico, como os das festas da família Ferreira. O pastor Henrique Vieira, o rabino Nilton Bonder e o líder muçulmano César Kaab Abdul, além do próprio Martinho, lançam suas mensagens de harmonia religiosa, apoiados no batuque de Carlinhos Brown, de pés fincados no terreiro.
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Na sequência, vêm “Vidas Negras Importam” e “Era de Aquarius”, ambas lançadas como single em 2021. A primeira, parceria de Martinho com Noca da Portela, é um xote que – a partir das palavras de ordem lançadas pelo movimento Black Lives Matter – clama pela igualdade entre as raças. Já “Era de Aquarius” imagina um cenário de paz e felicidade para a Humanidade nas vozes de Martinho e de Djonga, mas enquanto o sambista projeta o sonho para o futuro, o rapper puxa sua realização para o presente.
MARTINHO DA VILA E DJONGA EMANAM UM CANTO DE ESPERANÇA NA CANÇÃO “ERA DE AQUARIUS”
Em “Semba Africano”, Martinho junta a canção angolana “Muadiakime” com “Semba dos ancestrais”, antiga parceria de Martinho com a violonista Rosinha de Valença. Ao lado de sua filha Alegria Ferreira, que faz sua estreia como cantora, o cantor celebra a ancestralidade (“muadiakime” em quimbundo significa “ancião”). A gravação também foi lançada como single em 2021. Outra filha de Martinho, a cantora Mart’nália, é a homenageada de “Viva Martina”. O cantor lembra que ela era a única filha para a qual, ao longo da carreira, ele não havia composto uma canção. Com leveza, ele traça um retrato preciso com um fecho de ouro: a rima de “pirralha” com “Mart’nália”.
Parceria de Martinho com João Bosco, já gravada anteriormente por ambos, “Odilê Odilá” serve de alegre cenário para o encontro de Martinho com seus netos Raoni Ventapane e Dandara Ventapane. E prepara o terreno para a grande reunião familiar em torno do patriarca em “Canta, Canta, Minhe Gente! A Vila é de Martinho”, samba-enredo da Vila Isabel para o carnaval de 2022, em homenagem ao compositor. Estão na gravação seus filhos Mart’nália, Tunico, Analimar, Martinho Antônio, Maíra, Juliana, Alegria e Preto, além dos netos Raoni e Dandara.
Gravado como se fosse na Sapucaí, com direito a anúncio do locutor, fogos de artifício na abertura e participação da bateria da Vila (sob batuta do mestre Macaco Branco), o samba descreve Martinho, de um lado o “profeta, poeta, mestre dos mestres” e de outro o que vai “pela 28, chinelo de dedo” – em referência ao Boulevard 28 de Setembro, via principal do bairro de Vila Isabel.
Antes da despedida, entram ainda citações a sambas clássicos que Martinho levou à Avenida, como “Glórias gaúchas”, “Quatro séculos de modas e costumes” e “Sonho de um sonho”. Deste, Martinho tira as palavras que dão o toque final à “Mistura Homogênea”: “Sonhei, sonhei”. E o álbum confirma mais uma vez – segue sonhando e materializando sonhos em melodia e poesia. Ouça na íntegra: