Encantador, potente e mágico: a tríade de palavras pode bem definir o mar. Aqui elas descrevem também “Pelos Olhos do Mar”, novo lançamento do Selo Sesc que traz a primeira parceria fonográfica entre Daúde e Lia de Itamaracá. O álbum marca um encontro que une força ancestral e modernidade traduzidas nas vozes pujantes de duas mulheres representantes da cultura popular.
Com produção de Pupillo e Marcus Preto, o álbum reúne dez faixas que transitam entre o inédito e o revisitado. Canções compostas especialmente para o projeto convivem com releituras de clássicos da música brasileira, celebrando o feminino, a negritude, a resistência, a tradição e o poder da coletividade. Nas parcerias de composição estão nomes de referência na música brasileira: Chico César, Emicida, Céu, Karina Buhr, Otto e Russo Passapusso.
O projeto nasceu do olhar do produtor e empresário Beto Hees, parceiro de longa data de Lia, que imaginou as duas artistas juntas. A parceria entre ambas não é de hoje: depois de uma série de apresentações conjuntas nos palcos, o encontro ganhou enfim forma em estúdio, tornando-se um registro que reflete tanto a afinidade artística quanto a admiração mútua.
“A gente tinha essa vontade, esse desejo do encontro. A minha realidade musical e a dela se entrelaçam porque isso é Brasil. É música brasileira, é cultura popular, é cultura urbana. Não existe um bloqueio, é música. A arte tem esse poder da diversidade e de contagiar. Se não for assim, não vale a pena”, conta Daúde.

Apesar de terem tido trajetórias distintas na música, elas se complementam. De um lado Lia de Itamaracá, símbolo vivo da cultura pernambucana, Rainha da Ciranda, como é conhecida, e guardiã das tradições. De outro Daúde, baiana de origem e artista de vanguarda, pioneira ao unir elementos da negritude e da música brasileira em linguagem contemporânea.
“Eu já conhecia a Daúde da televisão. Olhava ela e pensava: ‘essa menina é tão bacana!’ Nas minhas andanças entre São Paulo e Rio, eu tive a oportunidade de me encontrar com ela e pensei ‘agora chegou meu dia’ (risos). Mas foi um encontro tão maravilhoso que ficamos até hoje. Nós trabalhamos com a música muito bem e nos damos bem. A união faz a força e assim fizemos. Aqui estamos, sãs e salvas”, diz Lia.
As dez canções de “Pelos Olhos do Mar” formam um mosaico de tempos, ritmos e histórias. O repertório navega por alguns mares: boleros que evocam romantismo e memória, cirandas que reafirmam identidade e pertencimento, e composições inéditas. Grande parte das faixas presentes no álbum foi pensada especificamente para as vozes das duas artistas juntas. “Santo Antônio da Boa Fortuna”, de Emicida, configura-se como oração que busca justamente esse elo, entrelaçando passado e futuro, muito simbólico quando se pensa na união das duas gerações que Lia e Daúde representam.
Karina Buhr compôs “Bordado”. De certa maneira, sua origem e história, baiana crescida em Pernambuco, teceu-se às das cantoras por meio da música. Já a canção que dá nome ao álbum, “Pelos Olhos do Mar”, veio de Otto a partir de uma base de Pupillo. A escolha por um bolero veio a partir de uma predileção de Lia pelo gênero.

Fechando as inéditas, Céu e Russo Passapusso se uniram para escrever “Florestania”. Lia e Daúde dão voz a essa moderna oração pela terra, floresta e pelos povos que nelas habitam. Nas releituras, o projeto buscou também extrapolar rótulos e compor um repertório que conversasse de maneira pessoal com as cantoras. Levou-se em consideração, por exemplo, canções que vão além da ciranda e que Lia gosta de cantar em momentos de intimidade.
Surgiu então a escolha por “Quem É?”, sucesso de Maurilio Lopes e Silvinho, sempre presente nas cantorias de Lia com seus amigos. Popularizada por Agnaldo Timóteo, foi por esta via que a cantora chegou à canção. A partir dessa relação, Daúde escolheu “A Galeria do Amor”, composta por Timóteo, que homenageia a diversidade dos anos 1970 na boate Galeria Alasca, no Rio de Janeiro, cidade que conversa intimamente com a baiana.
Mas as cirandas e os cocos não poderiam ficar de fora do projeto: as raízes aparecem no “Pout-pourri de Cocos”, com composições de Dona Celia e Dona Selma do Coco, e em “Se Meu Amor Não Chegar nesse São João”, de Mestre Baracho, com participação especial das Irmãs Baracho, suas filhas e ícones da cultura popular.
“A Lia canta ciranda e coco, mas ela também canta outras coisas e esse álbum tem a possibilidade de mostrar outra face dela. Canta bolero, canção, divide com outra artista dentro do estúdio. É uma outra veia que tá sendo explorada que ela tem dento dela”, comenta Daúde. Chico César sugeriu “As Negras”, canção presente em um de seus discos, para representar a força e altivez das duas. A canção, que abre o álbum, expressa um chamado à luta, à festa, à alegria e à beleza.
Em “Pelos Olhos do Mar”, as forças das duas artistas se encontram, ultrapassando gêneros musicais e fronteiras regionais, criando uma ponte entre a cultura popular e a modernidade urbana.


