Parece incrível, mas a palavra “pagode” já passeia pelo vocabulário da nossa língua portuguesa desde o século XVI. Naqueles primórdios, “pagode” remetia aos encontros e reuniões de músicos, não importando o estilo. Vale lembrar que, àquela altura, o samba ainda não tinha nem nascido – ele só surgiria quatro séculos depois. Mas, tão logo o samba chegou, tomou para si rapidamente esse termo: “pagode” passou a ser especificamente a festa do samba, as rodas que reuniam compositores, cantores e instrumentistas.
No final dos 1970, a partir das modificações que o gênero recebeu debaixo da tamarineira do Cacique de Ramos, “pagode” passou a ser também a variação do samba criada por aquela turma, que incluía Zeca Pagodinho, Arlindo Cruz, Fundo de Quintal e tantos outros. “Pagode” era o quê e o onde: ia-se ao pagode ouvir pagode. Mas o tempo seguiu em suas transformações. Saltadas mais duas décadas, já nos anos 1990, “pagode” passou a ser a linhagem mais pop e romântica do samba, produzida por grupos surgidos sobretudo de São Paulo, mas não apenas.
Nomes que logo explodiram nacionalmente, com grande sucesso comercial, como Só pra Contrariar (do Alexandre Pires), Katinguelê (do Salgadinho), Art Popular (do Leandro Lehart), Soweto (do Belo), Exaltasamba (do Chrigor e do Péricles) e Molejo (do saudoso Anderson Leonardo), entre tantos outros. Fizeram história e formaram escola. Em mais um salto temporal, chegamos em 2024. Unificando todos os sentidos que a palavra “pagode” agregou em 500 anos de existência – mas dando o foco principal à música criada por essa geração 90 do samba –, Mart’nália lança agora seu novo álbum, “Pagode da Mart’nália”.
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“O pagode dos anos 1990 fez um sucesso enorme em todo o Brasil e ajudou muitos músicos a mudarem suas vidas, a se encontrarem pessoal e artisticamente. Foi bem importante ver esse crescimento nas festas, indo para todos os cantos e misturando gente de todas as idades”, lembra Mart’nália. “O que estou fazendo nesse novo trabalho é reverenciar esses grupos e compositores. Pois eles ajudaram a criar uma conexão maior do público com o samba, que ainda era marginalizado naquele período. Fazer essa releitura e juntar a cadência do meu samba a essas canções contribui muito para minha própria liberdade no cantar. Esse repertório marcou muito a memória afetiva das pessoas no passado e agora pode conectar ainda mais as novas gerações ao universo do samba”.
De fato, memória afetiva não falta ao repertório final de “Pagode da Mart’nália”. A ideia era abranger o maior número possível de grupos, mas o que valeu como nota de corte final foi a relação de Mart’nália com cada canção. O campeão em presença no setlist foi o Só pra Contrariar: dos mineiros, a cantora refaz “Que se Chama Amor” (José Fernando), “Essa Tal Liberdade” (Chico Roque/ Paulo Sergio Valle) e “Domingo” (Alexandre Pires/ Fernando Pires/ Vadinho/ Renato Barros) – essa com participação de Caetano Veloso e um lindíssimo arranjo de cordas de Itamar Assière e Luiz Otávio.
Do Grupo Raça, entraram “Eu e Ela” (Délcio Luiz/ Ronaldo Barcellos) e “O Teu Chamego” (Beto Correa /Lucio Curvello/ Pagom), com Martinho da Vila dividindo as vozes com a filha. O Raça Negra está representado com “Cheia de Manias” (Luiz Carlos), em dueto de Mart’nália com Luísa Sonza (assista acima). O universo do Molejo está presente com “Clínica Geral” (Anderson Leonardo/ Pedrinho da Flor) e o do Grupo Revelação, com “Coração Radiante” (Xande de Pilares / Mauro Junior / Helinho do Salgueiro). Katinguelê e Exaltasamba são contemplados com os hits “Recado à Minha Amada” (Juninho do Banjo/ Fi / Salgadinho) e “Sem o Teu Calor” (Péricles/ Chrigor/ Isaias Marcelo). Por fim – não poderiam faltar – o Soweto é homenageado com uma nova versão de “Derê” (Ademir Fogaça) e o Art Popular, com “Sem Abuso” (Leandro Lehart).
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A ideia de Mart’nália se debruçar especificamente sobre esse repertório surgiu de um sonho. Empresária de Mart’nália há 25 anos, Marcia Alvarez acordou no meio da noite com a imagem e o som de sua artista cantando os versos de “Recado à minha Amada”, do Katinguelê: “Lua vai/ Iluminar os pensamentos dela/ Fala pra ela que sem ela eu não vivo/ Viver sem ela é o meu pior castigo”. “Mas ela não conseguia deslanchar com a música. Aí eu dizia: ‘Vamos para Vila Isabel, lá você vai achar o caminho’”, lembra a empresária. “Chamei o Marcus Preto para me ajudar a focar o projeto nos anos 1990 mesmo, pesquisei um repertório que eu sabia que se encaixaria no tipo de discurso que Mart’nália gosta de cantar e fomos indo”.
Produtor por trás de álbuns lançados por Gal Costa, Erasmo Carlos e Nando Reis, entre outros, Marcus Preto se entusiasmou com a possibilidade de ver esse repertório renovado pela voz e pela identidade tão marcantes de Mart’nália. “Quando Marcinha fez o convite, eu aceitei na hora. Tinha maratonado o ‘Mano a Mano’ [podcast de Mano Brown] e só ali eu me dei conta da real dimensão dessa geração do pagode para uma parcela gigante de artistas, muita gente começou a história na música ouvindo esses caras”, diz Preto. “Visionária, Alcione cantou essa bola lá atrás, ainda nos anos 1990, e gravou um álbum com esses compositores no calor da hora. Mas nada mais foi feito nas dimensões que esse repertório merece. E Mart’nália seria a voz perfeita para isso”.
O trabalho do produtor musical Luiz Otávio foi levar os arranjos para Vila Isabel, berço do samba de Noel Rosa, Martinho da Vila e, consequentemente, da própria Mart’nália. Com sua extensa bagagem de jazz, soul e black music – além do próprio samba – e conhecendo profundamente o universo de Mart’nália, o produtor foi buscando o equilíbrio. “Foi desafiador e gratificante ao mesmo tempo repaginar algumas das canções que são verdadeiros clássicos do pagode e que marcaram a história de tanta gente, inclusive a minha”, diz Luiz Otávio. “Mart’nália é uma artista com uma voz e uma sonoridade ímpar, por isso a ideia era trazer essas canções para o estilo dela de pensar a música, misturando ritmos e propondo novos caminhos sonoros”.
O álbum contou com uma banda espetacular, tendo Claudio Jorge nos violões, André Siqueira na percussão e Theo Zagrae na bateria. Jamil Joanes, Ivan Machado, Alexandre Katatau e Romulo Gomes se revezam nos baixos; Dadi e Julio Raposo se dividem nas guitarras. O próprio Luiz Otávio faz todos os teclados, com destaque ao número de voz e piano em “Essa Tal Liberdade”, em participação especial. Fred Camacho tocou o banjo em “Clínica Geral” e é de Hudson Santos o violão que seu ouve em “Recado à Minha Amada”. Os backing vocais são de Ronaldo Barcellos, Luiz Otávio e Mart’nália. As cordas de “Domingo” foram tocadas por Maressa Carneiro, Thiago Teixeira, Fernando Matta Marcos Graça (violinos), Diego Silva (viola) e (violoncelo), em arranjo de Assière e Luiz Otávio.
O trabalho marca a estreia da artista na gravadora Sony Music e conta com participações especiais de Caetano Veloso, Luísa Sonsa e Martinho da Vila. A produção foi dividida entre Marcia Alvarez, Luiz Otávio e Marcus Preto. A direção musical é de Luiz Otávio. A direção artística é de Alvarez e Preto. Ouça o álbum na íntegra: